Imprimir

Opinião

Litigância de má-fé como ameaça à garantia de acesso ao Poder Judiciário

Gisele Nascimento

Dentre as várias garantias concedidas pela Constituição Cidadã está a do acesso ao Poder Judiciário, sempre que alguém se sentir ameaçado de sofrer ataque a algum de seus direitos. Eis o teor do dispositivo constitucional em questão:
 
Art. 5º [...] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
 
Muito bom (e absolutamente necessário) que assim seja, especialmente porque um Estado que se pretenda Democrático de Direito precisa mesmo assegurar aos seus cidadãos (na verdade, não somente aos seus cidadãos, mas a todos que estejam em seu território) um mínimo de tranquilidade e segurança.

Mas não devemos nos iludir quanto a ser tal garantia direcionada apenas contra os particulares que possam eventualmente ameaçar direitos alheios, porque, muitas vezes, é o próprio Estado quem viola direitos dos particulares. E o faz usando de seu poder de império, notadamente no exercício do poder de legislar, o que constitui um verdadeiro e inaceitável descompasso com o ordenamento constitucional, porque para nós, simples mortais, enfrentar a lei, seguindo ditames legais, equivale a enfrentar um monstro, dadas as enormes dificuldades a serem encaradas.

O mesmo se dá quando temos a árdua tarefa de afrontar, também pelos meios legais, obviamente, decisões emanadas de outro poder estatal, o Poder Judiciário, para não falar do Poder Executivo, que não raro resolve inovar em suas prerrogativas, extrapolando os limites de sua legítima atuação.

Ai de nós se não fosse a valorosa e honrada classe dos advogados, esses bravos (e bravas) profissionais que enxergam o direito escondido atrás de um monte de obstáculos! Que vislumbram o excesso da atuação estatal num lance de mínima percepção sensorial. Em uma palavra (antiga, mas plenamente aplicável): “que acham a agulha no palheiro!”

E sejamos honestos, não raras vezes são mal compreendidos em suas peças, o que pode resultar em condenação por litigância de má-fé, o que vem se tornando um fantasma atual e absolutamente real, especialmente após a edição do Código de Processo Civil em 2015, e mais recentemente, com a entrada em vigor no ano de 2017 das alterações legislativas na seara trabalhista.

Afirmo sem medo de exagerar, a partir de recentes experiências no exercício da advocacia e de conversas com colegas de profissão: o instituto da litigância de má-fé, da forma como tem sido aplicado por significativa parcela dos membros do Poder Judiciário, tem aptidão para esvaziar o conteúdo da garantia constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário, no tocante às ameaças ao direito.

Toda vez que o magistrado utiliza um critério minimamente rigoroso ao avaliar o pedido formulado em uma ação, ou a fundamentação da causa de pedir, enfim, sempre que o juiz agir de forma pouco tolerante, pode estar fomentando paulatinamente uma ameaça de extinção do direito constitucional de buscar o  Judiciário como último baluarte para tutela de direitos.

Não pretendo com isso dizer que a punição por litigância de má-fé seja recente, seja algo inusitado.  Já havia em outros dispositivos legais, mas o instituto, sem dúvida, ganhou força a partir, principalmente, da entrada em vigor do atual Código de Processo Civil.

Daí a importância do papel sempre marcante do magistrado, que deve proceder com rigor e equidade, mas também com prudência e sabedoria, precisamente para aquilatar com tolerância se as partes processuais estão agindo com lealdade e boa-fé no interesse de seus constituintes, nunca esquecendo que, não raras vezes, o que possa ser considerado na primeira instância abuso da parte, por exemplo (embargos de declaração protelatórios, pedidos esdrúxulos, argumentos temerários ou infundados etc) pode ser acolhido como fundamento suficiente a ensejar a nulidade ou reforma da decisão recorrida.

Portanto, o rigor exacerbado na aplicação de uma sanção por litigância de má-fé, por vezes açodada, pode representar não exatamente a natural consequência de um argumento ou um pedido absurdo, mas consistir, no mínimo, sintoma de uma espécie de disfunção no mister de julgar, talvez no intuito de prestar a jurisdição de forma célere, ou ainda, por não “sentir na pele o problema do outro”, haja vista que a melhor forma de julgar o outro é colocar-se no lugar deste, num difícil (e raramente praticado) exercício de empatia.

Não se pode negar que há profissionais que se encaixam em cada um dos vários níveis do grande espectro de virtudes morais, em que eventualmente se há de encontrar aqueles que irresponsavelmente demandam por uma causa “previamente perdida”, ou seja, aquela que não tem futuro e que, portanto, sequer deveria ter sido ajuizada. Porém, não se deve tomar uma parte pelo todo, porque há igualmente os bons profissionais, a esmagadora maioria, aqueles que honram seu trabalho, lutando pelo autêntico direito de seu constituinte, ainda que ele não seja perceptível de pronto, pois há direitos que não se deixam vislumbrar facilmente, aqueles que demandam esforços imensos para se mostrarem em sua plenitude, tal qual a pedra preciosa que somente pouco a pouco se liberta da ganga que a encobre.

De idêntica forma, há juízes que se colocam nos extremos opostos no tocante à preocupação com o direito afirmado no processo. Uns que primam pela precisa aplicação da justiça, que buscam compreender a justa extensão do lastro probatório apresentado, ou da fundamentação da contestação etc, mas, por seu turno, há os que não se deixam sensibilizar pelos dramas que lhe são apresentados, e que, em síntese, não se esforçam o suficiente para tentar compreender os argumentos delineados na demanda e, nesse último caso, pode redundar numa equivocada percepção da realidade dos autos, e que eventualmente resulte na incidência de sanção por litigância de má-fé.

Enfim, a intolerante e rigorosa avaliação do contido no processo pode representar, ao final, crescente receio de demandar, o que, convenhamos, tem efeito avassalador para o Direito, e, portanto, para a Democracia.

Pode-se dizer que a matriz de onde sobreveio a garantia constitucional do acesso ao Poder Judiciário nasceu expressamente com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – 1969), posteriormente ratificada pelo Brasil, documento em que vários dispositivos acobertam tal garantia, dentre eles os arts. 1º[1], 8º[2] e 25[3].

Nesse contexto, há de se ter muita cautela antes da aplicação pura e simples da sanção por litigância de má-fé, pois a menor dúvida quanto à possibilidade de existência do direito, ou melhor, da viabilidade de discussão judicial acerca de sua existência, já deve ser o suficiente para afastar a sanção, no mínimo pelo benefício da dúvida, porque o litigante pode estar no limiar do que entende genuinamente ser seu direito (ou do direito de buscar o direito), mas, acima de tudo, o que deve prevalecer é o expresso comando constitucional que não dispôs sobre qualquer restrição desse direito de acesso ao Judiciário por meio de lei limitadora.

O que a Constituição diz é que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV), não definindo previamente qualquer limitação ou exclusão, como costuma acontecer quando usa expressões como “nos termos da lei”. Assim, parece de bom alvitre que o Judiciário acolha amplamente os que buscam a tutela do Estado contra qualquer agressão a seus direitos, e somente em último caso, nas hipóteses bem claras de abuso do poder de demandar, aplique a sanção aqui referida. 

Afinal, o receio de demandar e ser injustamente punido por isso representa, em última instância, o absurdo paradoxo do direito concedido, mas cujo exercício produz sanção.
Ou será que o Estado assumiu de vez sua falência, no sentido de deixar claro que somente aceita demandas fáceis, direitos prima facie?

Muita cautela e sabedoria são exigidas de nossos respeitáveis magistrados, para não vilipendiarem o supremo direito de buscar o direito.
 

[1]Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

[2] Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

[3] Artigo 25 - Proteção judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.


Gisele Nascimento é  Advogada em Mato Grosso, Especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor.  Membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB/MT. Contato no Instagram: @giselenascimentoadvogada 
Imprimir