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Quinta-feira, 25 de abril de 2024

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A razão do meu afeto

A forma como nos relacionamos em sociedade tem mudado muito com o passar do tempo, passando por uma espécie de reconfiguração em certos aspectos. Nunca dependemos tanto da tecnologia como agora, a ponto de nos sentir deslocados e desajeitados sem qualquer bugiganga tecnológica. E como reflexo dessa imersão profunda que nos faz levar uma vida virtual e real simultaneamente, o cineasta Spike Jonze nos traz uma bela e deveras imprevisível história de amor que une o melhor dos dois mundos em Ela.



Já não há mais necessidade de refletir sobre “como seria se no futuro...”, exatamente como fora feito por todas as décadas de 70 e 80. Vivenciamos no presente esse futuro tão apresentado em ficções científicas, que julgavam os anos de 2001 em diante como frutos do colapso do antigo mundo, mediante à chegada do Novo Mundo, onde carros sobrevoam, roupas são manufaturadas em artigos metálicos e o estilo brinca com as cores neon e tons bem claros, mostrando o contraponto entre o minimalismo do branco e prata diante das cores chamativas que expiram tecnologia avançada.

Mas cá estamos em 2014 e sabemos muito bem que dessas suposições e apostas exageradas, trouxemos mesmo foi a sede pelo avanço tecnológico em prol da praticidade. Não cabe abrir aqui uma discussão sobre o que Star Trek nos alertou em sua série ou de como Blade Runner sempre soube de tudo. Ou até mesmo flertar com o apaixonante De Volta Para o Futuro 2 e o subestimado à época Tron – Uma Odisseia Eletrônica. É possível pular todos esses sonhos eletrônicos que se tornaram realidade e cair em Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson na comédia-romântica de ficção-científica Ela.

Em Ela o foco está centralizado nas relações interpessoais. Seria interessante e compreensível observar a mudança geográfica do mundo, com imensos painéis digitais, algo um pouco mais exacerbado do que vemos na Time Square. Mas esses aspectos locais e territoriais são pequenos, diante da complexa relação entre seres humanos e claro, humanos-máquinas. E para tal necessidade e complexidade, Spike Jonze foi muito sábio em se abster dessa parafernália que cai bem quando convém. No filme Ela, não importa em si qual o contexto geográfico que você se encontra. Mas sim o novo contexto histórico-social traçado pela tecnologia, que modifica relações, dá as boas vindas à timidez e gera um pequeno abismo entre as pessoas.

Theodore Twombly (Joaquim Phoenix) está passando por uma fase difícil, que nos diz muito a respeito de como serão seus relacionamentos adiante. Com um divórcio em andamento, o jovem homem lida com a barreira surgida por conta da frustração de sua relação passada. Embora possua uma amiga realmente próxima (Amy, interpretada por Amy Adams), Theodore é fechado e recluso, homem de poucas palavras que centraliza sua interação social no videogame. Desperto pelo encanto do sistema operacional interativo OS1 (referência direta ao IOS da Apple), Theodore adquiri o programa e “conquista” uma nova amiga, Samatha (voz de Scarlett Johansson) – seu sistema operacional interativo.

A relação começa a tomar proporções – por assim dizer – extracurriculares devido a dois aspectos muito simples, mas característicos como divisores de água: a solidão e o avanço tecnológico. Diferente de qualquer programa ou sistema que possua comando de voz, o OS1 possui um tom acalentador na voz, comum e natural da voz humana. A doçura e leveza no falar tornam Samatha e qualquer outro OS1 real, ainda que tudo não passe de códigos e algorítimos que possibilitam que tal interação seja palpável. E a forma como a solidão e avanço tecnológico são entrelaçados e explicados se dá naturalmente, nos ajudando a compreender, como pessoas de fora, porque possuímos uma relação tão intrínseca com a tecnologia.

Não que todos nós sejamos, originalmente, tímidos. Tal característica possui suas peculiaridades em cada pessoa. Mas é fato dizer que todos nos constrangemos uma vez ou outra ou em algumas situações em particular. E também é fato que ninguém optaria por se constranger mediante tais situações. A tecnologia vem como uma espécie de auxílio para esse constrangimento – no contexto do filme. Coisas que as pessoas temem dizer face-a-face podem ser ditas com maior tranquilidade virtualmente. Aquelas travas e timidez que temos quando abordados de maneira invasiva e impessoal são quebradas com a tecnologia e isso explica o fato de tantas pessoas, em um mundo com mais de 7 bilhões de habitantes, se sentirem tão confortáveis com a relação invisível (amorosa ou não), mas real.

Ela nos mostra a tendência atual de todos nos tornamos pequenas ilhas, que vivem isoladas e se relacionam digitalmente. Não há necessidade se usar de artifícios óbvios, como as mesinhas de bar repletas de amigos vidrados em seus smartphones. É possível ir mais longe, traçando um paralelo de como a vida em sociedade ganha novos significados quando convidamos a tecnologia para imergir em nossas vidas. Cada pessoa passa a se tornar uma pequena ilha, como se o mundo coubesse e residisse única e exclusivamente nela.

E à medida que tudo se torna cada vez mais pessoal e íntimo – com essa exclusividade que a pequena ilha confere a cada um –, a amplitude tecnológica é projetada para satisfazer a todos de forma geral, contradizendo essa nossa necessidade de nos fechar em algo que seja apenas nosso. Mesmo assim, as relações humanas se tornam mais complicadas e o convívio em sociedade mais desconfortável e passamos a viver nesse intenso conflito interno onde somos incapazes de expressar nossos sentimentos e contratamos uma empresa especializada em humanizar aquilo que pensamos (por meio de “cartas digitais”), mas não dizemos. Ironicamente, este é o trabalho de Theodore, responsável por escrever cartas emocionadas entre apaixonados, familiares e amigos, mas incapaz de se abrir a um relacionamento fisicamente honesto.

Em Ela não há nenhum aspecto maximizado do que seria o futuro digital, como vimos tanto em filmes como os já citados no começo. Os carros trafegam exatamente como atualmente, as estações de metrô permanecem com o mesmo estilo underground de concreto de outrora e as roupas são, tecnicamente, vintages. Estranhamente, os homens são adeptos das calças de cós alto e dos populares bigodes de cafajeste dos anos 70. Essa mistura com a tecnologia avançada nos ajuda a compreender o apego que temos em nos manter fieis a nós mesmos, ainda que a tecnologia rompa com este antigo mundo onde se relacionar pessoalmente era "apenas" modinha.

E a abordagem trazida por Ela já foi contada antes, só que por outra perspectiva e com outros fins. Hoje a tecnologia anda lado-a-lado de todos, é impossível dar as costas a isso. Mas em 1984, ainda estávamos descobrindo o que ela poderia nos proporcionar. O tom vanguardista não intencional do clássico oitentista Amores Eletrônicos nos mostra, logo na primeira cena, o vislumbre e encantamento que qualquer parafernália tecnológica pode gerar em nós. Enquanto o arquiteto Miles Harding (Lenny von Dohlen) aguarda seu voo, seus olhos passeiam pelo saguão, tentando compreender por que aquelas pessoas que o rodeiam estão completamente absortas em pagers, walkmen, e carrinhos de controle remoto. É como se suas mentes tivessem sido tomadas por algo estranhamente atraente. E ele, completamente distante da tecnologia, se vê quase forçado a descobrir o que há de tão incrível nisso.



E a comédia se desenvolve em aspectos fielmente extraídos da nossa afeição pela tecnologia. Em uma época onde as pessoas mal sabiam o significado de computadores, quiçá como usá-los (belamente apresentado no filme por meio de diálogos que exprimem confusão e encantamento), Miles decide se render ao “brinquedo” para descobrir que o mesmo havia ganhado vida própria após um incidente. E essa vida própria de seu computador – que recebe o nome de Edgar –, que ouve sons e os reproduz com precisão e guarda em sua memória o timbre e entonação das palavras, entra em conflito com Miles, à medida que ambos se veem apaixonados pela linda vizinha, a musicista Madeline Robistat (Virginia Madsen).

As relações se tornam complicadas na leveza do desenvolvimento de Amores Eletrônicos. Considerando que as pessoas comuns pouco sabiam sobre os computadores e não detinham conhecimento de causa a respeito da sua funcionalidade, a década de 80 vive um período de descoberta e susto. Como apresentado em diversos filmes, inclusive alguns previamente citados aqui, a tecnologia viria para tomar o espaço do homem em sociedade. O Exterminador do Futuro que o diga. À época, vivíamos em um território frágil na questão do conhecimento a respeito das bugigangas eletrônicas (que evoluíram para digitais), mas essa relação homem-máquina era e permanece agridoce. Nos tornamos dependentes da tecnologia, na certeza de que esta mesma no proporciona independência e livre acesso a tudo.

Esses contrapontos foram trazidos em um período onde tudo ainda era novidade em Amores Eletrônicos e atinge seu ápice da reconfiguração dos relacionamentos contemporâneos em Ela. A discussão que se inicia em 1984 não é interrompida por um hiato de quase 20 anos. Ela se estende em nossa rotina e na evolução tecnológica que nos permitiu colecionar carcaças de celulares antigos e trocar de computadores para tamanhos cada vez menores. E quando o clímax desse relacionamento nos é apresentado na comédia romântica cult de Spike Jonze, podemos sentir exatamente o que um elemento – seja da cultura pop ou não – pode fazer em nós.



Todos querem estar inseridos no contexto, querem fazer partes das discussões, querem ter a tecnologia nas mãos (caso contrário, somos taxados de ultrapassados, na melhor das situações). Essa cultura tecnológica transcende para o universo pop e de como fazer parte da In Crowd é tão importante pra viver bem em sociedade. A discussão gerada por Ela é absolutamente pertinente e nos ajuda a refletir a respeito de qual será o destino final da sociedade contemporânea. Os questionamentos levantados por Amores Eletrônicos foram respondidos por Jonze em 2013 e as duas comédias conseguiram, em tempos diferentes e complementares, nos fazer compreender porque a tecnologia é a razão de nosso maior afeto.

"E o mundo passa, com tudo aquilo que as pessoas cobiçam; porém aquele que faz a vontade de Deus vive para sempre". (1 Jo 2:17)

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