Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Christa Wolf: reflexões acerca do tempo

Stéfanie Medeiros/ Olhar Conceito

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Após o intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Christa Wolf (1929-2011) foi uma relevante escritora alemã da segunda metade do século XX. Já tivemos a oportunidade de conversar sobre Wolf algumas semanas atrás, quando falamos sobre aspectos gerais da obra ,,Nachdenken über Christa T.” (1968; em português algo como “Considerações sobre Christa T.”, “Reflexões sobre Christa T.” ou ainda “Em busca de Christa T.” [esta última, tradução de Andreas Amaral]). Hoje voltaremos ao “Reflexões sobre Christa T.”, mas desta vez conversaremos sobre aspectos mais específicos da técnica narrativa empregada por Wolf.

Talvez o ponto mais importante do tratamento narrativo de Wolf neste romance seja o tempo, e sobre ele conversaremos hoje. Já da prerrogativa do romance – as reflexões acerca de uma pessoa já morta, ou seja, reflexões acerca do passado – é possível deduzir a importância do tempo. A situação se complica, no entanto, com um parágrafo no começo do livro assinado pela própria Christa Wolf afirmando que Christa T. é uma figura ficcional e que qualquer semelhança com pessoas reais é pura coincidência. Ou seja: ao mesmo tempo em que o romance tenta reconstruir ou recontar um passado, esse passado está apenas no plano da ficção. Trata-se então de uma visão retrospectiva – mas ao mesmo tempo não, porque não há como recompor o que nunca existiu, o que é ficção. É um movimento para trás – mas também para cima, em direção à imaginação e à fabulação.

Eis a configuração geral do romance. Dentro da narrativa, no entanto, há uma miríade de nuances temporais, de idas e vindas, de saltos, criação e anulação de cenas inteiras. O interior do romance é tão temporalmente instável quanto a memória do homem, e nisso mora um pouco da genialidade de Christa Wolf.

“O que lhe faltava era tempo.”, (,,Was ihr fehlte, war Zeit.”) podemos ler no sétimo capítulo do romance. E ironicamente justo aquilo que faltava a Christa T. é o que abunda no romance que em torno dela foi escrito.

Tomemos como exemplo a cena do quinto capítulo, na qual a narradora (a personagem secundária e narradora da história, jamais a pessoa Christa Wolf – em suma: a narradora homodiegética) visita Gertrud Dölling, uma amiga de faculdade que também conhecia Christa T. Depois de páginas e páginas de narração da conversa entre as duas sobre a falecida Christa T., narradas com a ajuda de uma especialíssima configuração de verbos e flexões verbais escolhidas a dedo, a narradora simplesmente escreve (as traduções de trechos do romance aqui ou acima reproduzidas são minhas):

“Não.
Eu não vou vê-la, eu não visitarei Gertrud Dölling. A conversa não acontecerá, (...)”

Ou seja: todas as páginas de conversa entre a narradora e Gertrud Dölling são anuladas por uma dúzia de palavras. A conversa é anulada – não as reflexões que essa fabulação provoca. O tempo ou a manipulação do tempo enriquece mais uma vez a tessitura narrativa de “Reflexões sobre Christa T.” e dá a ver o virtuosismo narrativo de Christa Wolf – não pela simples exibição de virtuosismo, mas sim pela construção de uma “situação narrativa” que aprofunda nosso conhecimento acerca da personagem principal do romance, no caso Christa T..

Afinal, fazem parte do luto tanto a rememoração quanto a fabulação – e a narradora (a narradora, não a autora!) escreve aqui um livro cuja matéria-prima é o luto. Neste caso especificamente a fabulação foi representada pela cena entre a narradora e Gertrud Dölling, apenas imaginada e logo anulada (isso para não entrar na questão de ser ou não toda literatura fabulação).

Às vezes vários anos são narrados em apenas uma ou duas frases, outras vezes um dia é narrado num capítulo inteiro. Portanto, apesar de o livro conservar uma certa cronologia (a narrativa toda no passado, mas “em direção” ao presente) em sua estrutura geral, em sua microestrutura a coisa é mais complexa e mais instável. Seria preciso analisar “Reflexões sobre Christa T.” capítulo por capítulo para começar a ter uma noção de o quão complexas foram as experimentações narrativas do romance (não tão extremas quanto as de um “Malina” da escritora austríaca Ingeborg Bachmann ou de um “Finnegans Wake” de James Joyce, mas mesmo assim significativas) aliadas como estavam à absoluta clareza da escrita de Christa Wolf.

Por esses e outros motivos voltaremos a conversar sobre o romance “Reflexões sobre Christa T.” numa outra semana.

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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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