Olhar Conceito

Terça-feira, 16 de abril de 2024

Colunas

Elias Canetti: a pior face do homem

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Elias Canetti (1905-1994) é um caso interessantíssimo na história da literatura. Seu campo de atuação (e de estudo e publicação!) não passava só pela literatura: cruzava também a sociologia, a psicologia e a filosofia – e sobre todas essas áreas do conhecimento publicou Canetti algo. Durante boa parte de sua vida desenvolveu um estudo relativamente complexo acerca da relação entre a massa e o poder (e sobre como essa relação se deu no século XX).

Canetti nasceu na Bulgária em uma família de raízes semitas, morou na Alemanha, na Áustria (de onde fugiu após o crescimento do antissemitismo), na Suíça e na Inglaterra – onde recebeu a nacionalidade britânica. Elias Canetti faz, no entanto, parte da literatura em língua alemã, já que escrevia nesta.

Entre um estudo e outro escreveu peças, romances, autobiografias e ensaios (ou seria o contrário?). Ou seja: é muito difícil restringir Elias Canetti a um só gênero literário, a uma só expressão intelectual. Nisso Canetti parece retomar a ideia antiga do homem “culto” como aquele que possui conhecimento acerca de vários assuntos, não de uma só área em profundidade. Suas obras contaminam umas às outras, de modo que no final não é fácil sentenciar muito bem qual livro pertence a qual gaveta. Tudo se suja e contamina – como o mundo, aliás.

Elias Canetti passou boa parte de sua vida sem grande reconhecimento da crítica e do público médio (como se fosse isso importante! Não é). Já mais para o final da vida os prêmios lhe foram chegando um atrás do outro, culminando no Prêmio Nobel de Literatura em 1981.

Poucos escritores no século XX foram tão cruéis com o homem e a sociedade quanto Elias Canetti – e houve muitos no século XX! Sua representação do grotesco, do sujo (ou do sujo aparentemente limpo), do mesquinho das relações humanas é implacável. Lendo Elias Canetti o homem se depara com seu lado mais animalesco e mais asqueroso – e o pior: vê tudo isso sob a capa bela da etiqueta, da aparente normalidade, da religião. Aí jaz a crueldade de Canetti: o leitor se vê frente a um homem como ele mesmo, não frente a um monstro.

E justamente isso – a normalidade, a educação, a etiqueta, o sorriso – é o que dá o frio na espinha.

Em peças como “Casamento” (,,Hochzeit”, 1932) ou em contos como “A difamação” (,,Die Verleumdung”, 1967) parece não haver – quando se pensa bem e pelo tempo necessário – caminho viável para qualquer sentimento bom em relação ao homem: o homem é ali retratado como o mais vil e perigoso dos animais, justamente porque veste terno e gravata por cima das escamas que tem e sempre vai ter. Na festa de casamento, ninando um bebê em seu quarto, num restaurante caríssimo, num quarto onde morre alguém, num outro quarto onde envelhece alguém – sempre há ali o homem educado. E não continua sendo a educação o nosso melhor disfarce?

Como eu já comentei no início deste texto, os livros e interesses de Canetti se cruzam. Por exemplo: seu grande interesse pelas massas e pela relação (e atração) que o indivíduo sente pelas massas (grupos sociais aos quais o indivíduo pode “pertencer”, dos quais ele pode “fazer parte” para “não estar mais sozinho” – vide igrejas, organizações, instituições – e dentro das quais ele ganha a liberdade que o quase anonimato e a aparente dissolução da sua individualidade trazem) permeia tanto “Casamento” quanto “A difamação”: o homem, protegido sob a sombra dos outros homens, torna-se capaz das maiores atrocidades. Fazer qualquer coisa numa avenida vazia é muito pior e mais vergonhoso do que fazer essa mesma coisa escondido por uma multidão.

É realmente muito estranho pensar que Elias Canetti – aquele escritor que mais cruelmente desnudou o homem e que foi mais do que implacável com ele em seus livros – seja o mesmo escritor que diz (como fez ele em “O ofício do poeta” [,,Beruf des Dichters”, 1976]) ser também papel da literatura criar “espaço para a ‘esperança’ e abrir um caminho para fora do caos”.

Pensando bem: talvez por isso mesmo tenha sido Elias Canetti tão cruel. E seguimos aprendendo.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

Comentários no Facebook

Sitevip Internet