Olhar Conceito

Sexta-feira, 19 de abril de 2024

Colunas

Coluna de estreia: Biblioteca de livros sobre um artista só

“Já posso compreender o velho homem que foi a algum lugar distante, lá na frente, sozinho...”
Rainer M. Rilke, em Cartas sobre Cézanne

Cézanne era um homem torto. Mais torto que Van Gogh, se me for permitido opinar, já que Van Gogh foi salvo pela orelha e todo mundo sabe dessa história. Cézanne, ao que parece, caiu. Uma vez. Ele saía para pintar, austero, e o que contam é que um grupo de meninos derrubou o pobre Cézanne no chão mas isso não é tão interessante e não se fala mais no assunto. O que quero dizer é que a Vincent foi permitido pintar esquisito mas a Cézanne, bom... Eu, por exemplo, não conheci Cézanne até de fato querer conhecer.

Quando eu era mais nova e descobri que queria saber de arte (não lembro exatamente como aconteceu!), passei pela dificuldade de não saber por onde começar. A internet era muito nova na minha vida ou eu mesma era muito nova pra internet e eu queria saber das coisas: tinha medo da internet me enganar. Confiando nas palavras impressas em papel, comprei muitos livros online, minha única opção já que as livrarias não ofereciam livros sobre arte, que normalmente são bem caros. Tive que encomendar os meus então, meio às cegas. Uns eram bons, outros péssimos. Acho que posso dizer que foi assim que começou minha caçada por Cézanne e minha paixão por receber objetos via correio (meu nome, que é Leíner Hoki, -uma grafia simples, parece ser muitíssimo complicado de copiar e eu recebo encomendas endereçadas para as mais diferentes pessoas, como a Leimor Hok , por exemplo). Meu ponto é: não é muito fácil realizar o interesse de conhecer os artistas, suas obras e suas histórias.



Muitos dos livros que comprei eram desses específicos sobre um artista (normalmente aquelas edições da Taschen), eram, como eu acabei de dizer, sobre um artista só. Quando é assim, o que normalmente acontece é que acabamos por escolher alguns para termos livros a respeito e o conhecimento panorâmico da história da arte, que nos permite transitar pelos períodos e entender uma certa lógica de sucessão, fica muito fragmentado. Essa maneira de conhecer, de tijolinho por tijolinho, faz com que tenhamos de escolher os preferidos antes mesmo de saber de tudo o que há, isto é: acaba que compramos o livro pela capa, ou o artista pela obra da capa (do livro). Ótimo!, sem problemas optar por aqueles que nos deslumbram de imediato, coisa que acho que um Van Gogh opera, mas Cézanne (opino), não é assim. Pra “gostar” dele é preciso de um pouco mais de tempo, é preciso de um flerte sutil e persistente.

Vou me explicar. G. C. Argan, em seu livro Arte Moderna, escreve que depois desses dois grandes artistas “tudo, na cultura artística européia da primeira metade do século, gravitará em torno dos dois termos opostos”: Van Gogh ou Cézanne. É sabido, então, que estamos olhando para dois gigantes, mas afirmo sem receios que Van Gogh é mais loureado, mais popular que Paul Cézanne. Isso porque Van Gogh é conhecido por muito mais pessoas de fora do universo cultural que Cézanne, que é conhecido por muitas pessoas de dentro, só pelo nome, nada mais se sabe.

Talvez isso se deva principalmente ao que Argan chamou de “biografia sem acontecimentos” de Cézanne, que “renunciou a ter uma vida para realizar sua obra, ou melhor, fez da obra sua vida”. Pois bem!, escrevo então para defender Cézanne aos olhos dos que se interessam pelos artistas e suas obras, aqueles que querem saber de arte, mais ou menos da forma como eu mesma quis em um primeiro momento.

Voilà!

Posso retornar, desse modo, à torteira (à qualidade de ser torto), que citei no começo. Escolhi a pintura O monte Sainte-Victoire (1904 -6) e Madame Cézanne em uma poltrona amarela (1890), para demonstrar que estou falando de algo literal, de uma maneira de pintar. No primeiro, observamos que Cézanne renuncia ao desenho. Ele não circunscreve os contornos, não enquadra a cor pela linha, ele não compõe a perspectiva do que vê. Desenhar, compor, enquadrar a natureza para depois pintá-la é uma alternativa pronta, já muito desgastada. Cézanne prefere ver as coisas e pintá-las como as vemos: oscilantes, em movimento. Desse modo, não pinta um esquema do modelo, mas pesquisa sua experiência do real (ele dizia que os clássicos “faziam o quadro, e nós tentamos um fragmento da natureza”). Merleau-Ponty, em seu A dúvida de Cézanne, escreve sobre essa maneira de perceber os objetos: “dizer que um círculo visto obliquamente é visto como uma elipse é substituir a percepção efetiva pelo esquema daquilo que veríamos se fôssemos aparelhos fotográficos: vemos, na realidade, uma forma que oscila em torno da elipse sem ser uma elipse”. O que o filósofo indica, nessa passagem, é que o modo como vemos não é esquemático, mas impreciso e fluido. Ou seja, o espaço não se apresenta em perspectiva na nossa experiência da realidade e a sensação visual não se dá em precisão geométrica.

E é por isso, então, que no retrato de sua esposa, Cézanne permite-se pintar o friso do revestimento da parede, que atravessa atrás dela de um lado para o outro, parecendo desarticulado. Uma ponta não encontrará a outra, pois não formam uma linha reta. No entanto, essas deformações são com o que lidamos em nossa percepção: linhas retas pertencem à geometria e não à natureza. Eis, então, a torteira: as pequenas verdades de Cézanne.

A realidade em sua pintura não deixa de ser incômoda, quase escandalosa. Sua pintura está longe de ser monumental e sua pretensão não era a de produzir obras-primas. Ele era um trabalhador, um homem que se dedicou à pintar como se visse tudo pela primeira vez, como o primeiro homem. Talvez, para alguns leitores Cézanne nunca entre para sua coleção de livros de um artista só, tudo bem. Não pretendi convencer ninguém a gostar de Cézanne em detrimento daquilo que já se gosta. Quis apenas apresentar, fazer um elogio a um artista cuja densidade é muitas vezes difícil de engolir. Quem sabe não se torna possível gostar de Cézanne com um gosto novo, de um novo tipo, um olhar fresco, e guardá-lo em separado, em sua glória oculta?

*Leíner Hoki, cuiabana, 22 anos. Atualmente cursa belas artes na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

Comentários no Facebook

Sitevip Internet