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Quinta-feira, 28 de março de 2024

Colunas

Guimarães Rosa: a opulência simples da linha

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

Falar sobre Guimarães Rosa (1908-1967) (como falar sobre Machado de Assis, Drummond, Cecília Meireles e outros) é repetir o já mais do que dito. Quase sempre, aliás, escrever sobre artistas é repetir, mas o caso se intensifica 1) quando se trata de um autor da projeção e da importância dos quatro que citei e 2) quando quem fala não é um crítico literário (e eu não sou).

Por esses e outros motivos, falarei o mínimo possível.

Novelas como “A hora e vez de Augusto Matraga”, “Minha gente”, “O burrinho pedrês” e “Corpo fechado” (isso só para ficar em ‘Sagarana’, primeiro livro publicado pelo autor) são alguns dos muitos pontos altos da nossa literatura brasileira, tanto em matéria de enredo quanto de técnica narrativa, inovação e frescor de linguagem. Que leitor atento nunca se viu diante de uma ou duas linhas de Guimarães Rosa, aparentemente banais, mas em cujo espaço mínimo se tem a impressão de estarem guardadas – entre buritis, vaqueiros e loucos – a primeira e a última palavras sobre a condição humana? São muitas as nódoas no tecido sempre excessivo da escrita de Rosa, e nunca a palavra ‘nódoa’ teve uma conotação tão positiva quanto nesse tecido especificamente. Há trechos que carregam simultaneamente um frescor e uma brutalidade tão fortes que fica difícil entender como foi possível unir elementos narrativos aparentemente tão contrários; assim como fica impossível reconhecer para esses trechos outro destino senão o Absoluto.

Até em novelas consideradas ‘menores’ pelo próprio autor, como “Sarapalha” (“SARAPALHA – Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro [Sagarana], será ela, talvez, a de que menos gosto” escreveu Guimarães Rosa em carta a João Condé), alguns trechos se destacam e se pregam à mente do leitor, para zunir nesse grande mundo movimentado, caótico e verdadeiro que é o das reminiscências de nossas leituras. Em “Sarapalha”, por exemplo:

“(...)

Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!... Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e aguentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Para, para tremer. E para pensar. Também.

Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um caçununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.

— Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!...

E o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.”

As narrativas de Rosa são quase sempre ‘excessivas’, e constantemente trazem à mente a imagem de um fruto bastante maduro, pesando já de tão doce, quase luxuriante. Para compará-lo à escritora sobre a qual conversamos na última coluna deste jornal, a genial Orides Fontela, eu diria que a escrita de Rosa é o oposto da escrita mínima de Fontela: Rosa é fruto quase pingando na volúpia do açúcar, Fontela é um fruto que teima em se manter verde e duro como pedra, apesar da maturidade; ou, usando outra imagem, Fontela teima em se manter água, enquanto Guimarães Rosa se faz vinho.

Seja como for, Guimarães Rosa continua sendo um dos cinco ou seis escritores de prosa mais significativos da literatura brasileira, e isso não é segredo para ninguém. Eu não precisava repetir o óbvio, repeti por pura birra. E tomado por essa mania de repetição, repito o que passei as últimas semanas dizendo aos amigos: releiam Rosa! Escolham uma ou duas novelas do mestre e leiam ou releiam Rosa! Talvez “A hora e vez de Augusto Matraga” e “O burrinho pedrês”? Talvez “São Marcos”? Tanto faz. Mas façam.

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*Matheus Guménin estuda literatura alemã na USP, escreve sobre literatura para jornais do estado de Mato Grosso, é tradutor e escreveu um livro ainda inédito de poemas, que sairá entre 2016 e 2017.

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