Olhar Conceito

Terça-feira, 19 de março de 2024

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Então não é busca. É saudade.

A experiência de “Repetição dos pães” (conto que abre o livro quase homônimo ‘A repetição dos pães’ [7Letras, 2017] de Caio Augusto Leite) é mais do que simples experiência de leitura: é experiência de feitura e de partilha do silêncio comum ao leitor e ao narrador, do silêncio que não se sabe bem como poderá ser preenchido – e se. Essa partilha de pão sem sombra e sem forma é a que nos cabe.“Repetição dos pães” é mais do que descrição de uma busca:é sua concretização. Ler o conto é ser pego pela gola e arrastado na caça não se sabe bem de que – mesmo e principalmente contra a vontade do leitor.

Não se sabe bem o que, mas se intui. Talvez nisso esteja a grandeza da prosa de Caio Augusto Leite: no construir um texto de tal forma que – mesmo bebendo o autor das mais labirínticas fontes da filosofia e da literatura ocidentais – cria uma experiência artística minimamente compartilhável entre autores, leitores especializados e leitores eventuais.

Uma leitura atenta apontaria no conto de duas páginas e meia sopros da Bíblia, de Espinoza, de Leibniz, de Deleuze, de Clarice Lispector, de José Saramago. Isso e a absurda e quase descontrolada força criadora que pulsa de Caio Augusto Leite.

Os nomes citados anteriormente não o foram impunemente: cada um deles produz ondas na superfície já nada lisa do conto. A Bíblia é apontada já na epígrafe e contribui muito para o tom; Espinoza e Leibniz surgem através de suas respectivas acepções de Deus; Clarice Lispector com seu vigor de rápidas combinações mentais que modulam o tom bíblico; Saramago com um rigor de fraseado pouco ortodoxo. Apontam-se aqui direções que qualquer estudante universitário poderia seguir à exaustão: a riqueza da tessitura literária o permite. “No fim, a busca é daquilo mesmo que já estava. Então não é busca. É saudade. Sentindo saudade do que foi deixado, sabemos que aquilo deixado era o que se buscava. Procuro a minha mais última saudade: naquele mínimo coração está minha vida toda condensada.” (LEITE, 2017, p. 12).

Caio Augusto Leite parece fazer coro àqueles artistas para os quais a arte é mais instrumento do que objetivo: instrumento de inquirições em torno do estar-no-mundo. Seria então possível aplicar a Caio Augusto Leite aquilo que Ailton Siqueira de Sousa Fonseca escreve sobre Clarice Lispector em seu artigo ‘Clarice Lispector: o rio que deságua na fonte’: “Ao tentar, por meio da escrita, entender o estado do ser-no-mundo, Clarice ia ao encontro das verdades que a cultura aterrou ao desenraizar o homem da natureza, verdades que constituem a nossa matéria e condição no mundo e na vida. Para ela, é na atividade de escrever que o homem exerce a ação por desnudamento, revela o mundo e o homem aos outros homens.”

Essa revelação é feita também ao próprio autor, fonte e delta de sua própria literatura.
Ou – nas palavras de Caio Augusto Leite nas linhas finais do conto: “Repito. Repito. Repito. Repito para matar a grande fome. Repito até que perca meu nome o significado. Até que seja vazio um nome. Até que suma toda água do tempo. Para que depois eu volte a mim com toda força e me preencha somente daquilo que me é.” (LEITE, 2017, p. 13).

Textos sobre livros recém-publicados tendem a cair ou na efusão de elogios ou na quase completa indiferença frente à obra. Sabendo disso, torna-se sempre penoso escrever sobre eles – ainda que um texto tão breve quanto este. Mesmo assim, arrisco-me a apontar A repetição dos pães como um ponto luminoso em nossas letras contemporâneas, e o faço através das palavras que escreveu Vitorino Nemésio sobre um dos primeiros livros do poeta Eugénio de Andrade: “[...] E porque eu, quando digo grande poeta, não é para o dizer depois de amanhã outra vez e a quem quer, senão que penso naqueles três ou quatro grandes poetas, o máximo, que contamos entre os vivos de nossa poesia, e entre os quais estão inequivocamente um Teixeira de Pascoais, um Afonso Duarte. É nesse rol que me parece preparar-se para entrar o moço Eugénio de Andrade.” (Diário Popular, 22.12.48).
É nesse rol que me parece preparar-se para entrar o moço Caio Augusto Leite.
E tenho dito.
 
 
O conto “Repetição dos pães”:
 
Repetição dos pães(Caio Augusto Leite**)
“O que se prende à sua vida, perdê-la-á;
e o que perder a sua vida por meu amor,
achá-la-á” – Mateus 10: 39
 
Repito não por falta do que dizer, mas para que o que foi dito continue dito. Repito para que dure. Como se envolvesse a pedra com pedra: para que mais pedra seja. Para que não se perca ao vento a pedra que rola a montanha. Só há lógica naquilo que existe ao toque da mão: a ideia sempre foge. Digo a ideia para que seja mais que ideia, seja ato. O ato se concretiza no espaço. É no espaço que tudo é. Deus é o espaço em que habito. Digo Deus para que Ele seja. Se não fosse o que digo, nada poderia ser. E nada poderia dizer mais. É um círculo fatal. E perfeito. Enquanto falo, crio; enquanto crio, falo. E tudo que falo se cria, e tudo que é criado é falado depois por mim. Num jogo de vozes ativas e passivas que se modulam em verbos na frase cíclica. Eu amo, pois há amor e tendo amor posso ser amado. Por isso repito. Repiso os passos que já pisei para que continue a existir caminho: para os que vêm depois de mim. A estrada permanece. Como já permaneceu antes por alguém ter pisado nela antes de eu chegar. Esse pequeno parágrafo é uma pedra que se retirou de um grande monte. Uma lasca do que é eterno. É a parte de um todo profundo e sólido. É um fiapo do manto do Deus impenetrável, intocável, invisível. Essa pedra-palavra-parágrafo. Aquela que jogamos na superfície lisa de um lago e que se espalha em ondas concêntricas: tudo é concêntrico. Viemos do pó da pedra, ao pó da pedra voltaremos. Por mais que se fuja de casa. O centro das ondas que se espalham, cada vez mais distantes do ponto em que a pedra afundou. Mas até essas ondas se reduzem e retornam ao ponto mínimo de começo. Repito para que caia a pedra. Essa jornada é sempre de mim para mim mesmo. No fim, a busca é daquilo mesmo que já estava. Então não é busca. É saudade. Sentindo saudade do que foi deixado, sabemos que aquilo deixado era o que se buscava. Procuro a minha mais última saudade: naquele mínimo coração está minha vida toda condensada. Enquanto não acho, repito a pedra que me faz onda no lago eterno. Sobre as águas paira o Grande Espírito. Tenho fé no recomeço de mim. Quando eu estiver o mais longe que puder daqui, terei atravessado a película de meu rosto; chegando ao que me é alheio, chegarei ao cheiro singular do suor em minhas axilas, meu cheiro de homem cansado. Então retornarei, encolhendo feito as ondas do lago. Não triste. Não resignado. Mas feliz. Por ter perdido, encontrarei. Por ter deixado, terei. De novo menino no centro perfeito onde só cabe a palavra Eu. Até lá a vida seria ânsia. Náusea. Inquieto que sou. Preciso lançar a pedra com força e dor. A maior pedra que puder. Para que me lancem as ondas para o mais distante de meu próprio pensamento. Por isso repito. Um dia um Homem repetiu os pães e os peixes e matou a fome repartida por tantos. Repito. Repito. Repito. Repito para matar a grande fome. Repito até que perca meu nome o significado. Até que seja vazio um nome. Até que suma toda água do tempo. Para que depois eu volte a mim com toda força e me preencha somente daquilo que me é.
 
*Matheus Guménin Barreto nasceu em Cuiabá. Formou-se em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP), onde agora é mestrando da área de Língua e Literatura Alemãs na subárea de tradução. Suas traduções de IngeborgBachmann foram publicadas em Dito ao anoitecer (2017) e na antologia Lira argenta (2017), e suas traduções de Bertolt Brecht no livro Cântico de Orge (2017). Já foi colunista do Olhar Conceito.

Publicou em agosto de 2017 seu livro de poemas A máquina de carregar nadas pela Editora 7Letras.

E-mail para contato: matheusgumenin@hotmail.com

 
**Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo. Cursa pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP) no programa de Literatura Brasileira, onde estuda a obra de Clarice Lispector.

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