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Colunas

Somos desertos, mas cheios de gente: lugares vazios não são desertos de sentidos

Reinaldo Marchesi

Uma crença de mesmo vetor no sentido contrário é o meu vazio diante de seu todo. Gostaria de falar de desertos. Quero falar de lugares vazios. De todas as suas formas. Não quero falar dos desertos vazios da geografia. Quero falar de desertos humanos e humanos desertos. Compartilho uma angústia que minha experiência humana me proporcionou na dimensão do vazio.



Ao longo da vida tive a oportunidade de conhecer vários lugares vazios, alguns inóspitos e outros desérticos. Lugares onde aparentemente existiam poucas coisas. Era quase sempre um vazio de gente. Conheci o deserto da Bolívia em duas ocasiões distintas. O deserto Peruano dá para ser visto nas rodovias, lá existem desertos de sal, rochas e areias. Deserto com gente carente. Na Normandia estive em meio ao gelo de um dos invernos mais rigorosos que tornou o norte francês semelhante a um verdadeiro deserto às avessas, extremamente branco e inóspito.

Judaísmo, Cristianismo e Islamismo são religiões monoteístas que nascem no deserto, no meio do vazio. Nascem do medo da morte, nascem da tortura do corpo diante das adversidades. Assim a solidão nos fez pensar num deus, nos fez pensar na existência. A solidão nos fez pensar na busca por algum sentido. O vazio quase sempre nos desampara. Nos desespera.



No vale de lágrimas ou no vale da morte. O corpo é senhor de nossas vontades. O deserto absorve nossas almas.

O clima do deserto não me é estranho. A frieza do vazio de nossa neve é bastante diferente do vazio de nossa gente.

Todos deveriam ter a oportunidade de uma experiência de deserto ou uma prova do vazio. Sentir o vento na face enquanto olha a imensidão. Só assim saberiam diferenciar que todo vazio de gente é menos dolorido que toda gente vazia. Gente do vazio é o vazio da gente. Sons e ventos que cortam a falta de tudo.

Existem pessoas que nos desertificam. Existem lugares vazios que nos preenchem.

Existem pessoas na selva de pedras em meio aos desertos de gente. A multidão é uma experiência de deserto. Estar na multidão é quase sempre desertificante. Um vazio. Estar em meio às multidões sempre me causou a impressão do vazio de alma. Os rebanhos se agrupam para protegerem-se do vazio desconhecido.

Talvez poucas pessoas irão entender minha sensação de deserto. Nenhum deserto é mais mórbido, mais cálido, mais seco, mais árido, mais inóspito, mais morto que as multidões. Produzimos desertos, somos desertos, mas cheios de gente.











*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco.

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