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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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sem esperança

Haitianos que vieram para Cuiabá na esperança de uma vida melhor amargam anos de desemprego

Foto: Letícia Ferro Ferraz / Olhar Direto

Lumenes está em Cuiabá desde 2013

Lumenes está em Cuiabá desde 2013

“Você sabe qual é a situação do Haiti? Você vê seus amigos vindo, conseguindo emprego... é claro que quer vir também”. A declaração é do haitiano Lumenes Medelsain, de 44 anos, que em 2013 viu no Brasil uma chance de melhora de vida. O sonho era conseguir dinheiro para sustentar seus quatro filhos, que ficaram na terra natal. No início deu certo, mas em 2015 as coisas mudaram. Hoje, ele está há cerca de seis meses sem conseguir um trabalho formal, e, sem dinheiro para voltar pra casa, está há quatro anos sem ver a família.

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Ele é um dos 3379 haitianos que o ‘Centro de Pastoral para Migrantes’ de Cuiabá atendeu de 2013 a 2016. Antes da Copa, conseguiu trabalhar como pedreiro e enviar dinheiro para a família, além de alugar um quarto no bairro Leblon. “Em 2015 complicou”, lamenta, enquanto ouve os louvores da igreja Assembleia de Deus [onde se batizou há quase três anos] nos fones de ouvido, sentado na área comum da Pastoral. Ali, ele consegue se alimentar e resolver problemas de documentação, quando precisa. Assim como ele, diversos haitianos são evangélicos, e muitos precisam da ajuda da casa mesmo anos depois de terem chego no Brasil.

A Pastoral foi criada em 1980, por uma iniciativa Arquidiocese de Cuiabá, no ano em que as igrejas estavam estudando o fenômeno da migração, sob o tema “Para onde vais”.  “Cuiabá era o corredor do portal da Amazônia, e havia naquele momento um incentivo do governo para a colonização do interior do nosso estado”, lembra a coordenadora do local, Eliana Aparecida Vitalino.

No início, a Pastoral era mais voltada a migrantes nacionais, que viam na casa um local de acolhida para depois seguir viagem para o interior, onde iam trabalhar nas lavouras e na antiga usina de Poconé. As coisas começaram a mudar, no entanto, em 2012, com a chegada dos haitianos. Saindo do país – que estava ‘quebrado’ por conta do terremoto de 2010 e da pobreza intrínseca – eles passaram a chegar em grupos cada vez maiores, e com a intenção de se fixar em Cuiabá.


Eliana Vitalino, coordenadora da Casa do Migrante (Foto: Letícia Ferro Ferraz / Olhar Direto)

“O governo brasileiro já havia feito, nesse momento, uma lei específica para os haitianos, por conta da situação que o país estava vivendo”, explica a coordenadora. “Essa lei permite que o haitiano, ao entrar no Brasil, imediatamente já consiga fazer CPF, carteira de trabalho, e já consiga a sua residência no país. Esse visto eles recebem lá no Haiti, e já vem para o país todo documentado”.

Apesar dessa facilidade, eram poucos os atendimentos feitos por dia na Embaixada do Brasil no Haiti, e muitos haitianos decidiam vir pela fronteira, sem o visto. “Chegando na fronteira eles solicitavam o refúgio, como outros cidadãos também fazem, e também tinham o direito a ter seu protocolo. Porque o processo vai pro Conselho Nacional de Refugiados, então enquanto esse projeto tramita, eles já tem o direito de ter sua carteira de trabalho”.

Essas facilidades se somavam à propaganda feita pelo governo brasileiro no país. Eliana conta que muitos haitianos chegavam dizendo que ouviram falar que o brasileiro gosta dos haitianos, que aqui tinha facilidade de documentação e de emprego, e se convenciam de tentar a vida por aqui.

Para vir pra cá, eles se endividavam, na esperança de pagar todas as contas com trabalho que realizariam. “Quem veio pra cá se endividou, teve que pagar passagem. É uma viagem cara, a família às vezes se juntava inteira pra mandar um membro pra cá. Aí esse membro teria que pagar sua passagem e conseguir trazer o restante dos familiares depois”, lembra Eliana.

No início, dava certo. Muitos haitianos, como Lumenes, conseguiram trabalhar na construção civil, ter retorno financeiro rápido e até enviar dinheiro para a família. Na época, a Casa do Migrante firmou ainda uma parceria com o Ministério do Trabalho e, até hoje, toda terça-feira uma auditora fiscal vai até o local para dar consultoria aos recém-chegados. “Porque quem chegava não conhecia a lei trabalhista brasileira, quais eram os deveres, quais os direitos... e também para orientar o empregador, porque havia uma procura maior, mas uma dúvida muito grande sobre qual documento buscar, etc”, conta.

Nos tempos áureos, a auditora estava lá para explicar sobre as contratações. Hoje, no entanto, a maior procura é para esclarecer sobre rescisão de contrato e, vez ou outra, ouvir alguma denúncia de irregularidade. “Muitos, depois da Copa, com a escassez do trabalho, desistiram, foram embora. Teve ônibus de pessoas que foram pro Chile, ou México na tentativa de entrar nos Estados Unidos”.

Mas muitos outros continuam chegando. Só em 2016, a Casa do Migrante acolheu 394 haitianos, fosse para pouso, alimentação, ou documentação. “Quando eles chegam com sua documentação, com visto, tem que fazer seu protocolo no sistema da Polícia Federal, tem que tirar as guias de pagamento. Então a gente faz esse trabalho não só pros de casa, mas também pros de fora”, explica. Desta forma, até mesmo a Polícia Federal encaminha os recém-chegados para a Pastoral. Hoje, quem chega tem que pagar uma taxa de 312 reais só para fazer seu Registro Nacional de Estrangeiro.

Como funciona a casa


Eliana fazendo atendimento (Foto: Letícia Ferro Ferraz / Olhar Direto)

Quando atendia a população interna, a Pastoral era vista apenas como um local de pouso e abrigo. “Era uma casa de acolhida, um espaço de aconchego, um espaço pra recarregar suas energias, ter um teto na sua cabeça antes de seguir viagem”, lembra Eliana.

Com a vinda dos imigrantes que queriam ficar em Cuiabá, até mesmo o prazo de estadia na casa teve de ser alterado. “A gente ampliou pra 45 dias, mas é um prazo mais psicológico. Porque antigamente, em 2013, 2014, eles conseguiam... Chegavam, conseguiam um trabalho, com 30 dias recebiam seu salário, alugavam um quarto e já dava pra se estruturar. Agora, vocês vão ver que tem gente que está na casa há 4, 5 meses e não conseguiu o seu trabalho ainda”.

A Pastoral do Imigrante tem cem camas e oferece três refeições por dia, teoricamente só para os que estão hospedados ali. “Mas tudo tem que ter jogo de cintura. Tem gente que está há um ano desempregado, aí você calcula, como que vive um ano sem emprego? Então, como nós somos uma instituição católica, temos oito comunidades que nos ajudam, às vezes fazem uma missa do quilo e mandam alimento pra cá. Agora mesmo teve o Peladão, mandaram alimento pra cá, então a gente vai distribuindo também”.

Além de cama e comida, o espaço também é procurado para fazer higiene pessoal, lavar as roupas, e ter qualquer auxílio em relação à documentação. “O que acontece é que a gente teve que ampliar de acordo com as necessidades. No caso dos haitianos, os passaportes também vencem. E aí? Só quem faz passaporte é a Embaixada. Então nós entramos em contato com a embaixada, ela manda os formulários de passaporte, que poderia mandar até pra casa deles, mas a maioria ainda vem aqui pra esse auxílio”, explica Eliana.

Segundo a coordenadora, muitos dos procedimentos poderiam ser feitos diretamente entre os haitianos e os órgãos responsáveis, “mas ainda há uma questão de segurança. A pessoa que está fora do seu país fica insegura em relação à legislação, né? É uma troca de confiança mesmo, prefere vir aqui pra ter segurança pra fazer”.

A Pastoral do Migrante é mantida pela Sociedade dos Missionários de São Carlos (PIA), uma congregação dos padres Carlistas e Scalabrinianos que tem por missão estar onde o migrante está e, hoje, se faz presente em 36 países, sendo que no Brasil tem quatro unidades.

A barreira da língua

Quando chegam ao Brasil, o primeiro impedimento dos haitianos em relação ao emprego é a língua. Para tentar diminuir essa dificuldade, a Pastoral precisou fazer parcerias com outras entidades, como a Universidade Federal de Mato Grosso, que dava aulas na casa, e, mais recentemente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), especificamente para as mulheres.

“A gente se preocupa muito com as mulheres, porque muitos maridos foram embora, e algumas mulheres ficaram com os filhos, e aí como que vai arrumar trabalho?”, explica. “Nós solicitamos, e fomos atendidos, graças a Deus, e pela OIT fizemos um cadastramento de noventa e poucas mulheres que ainda estavam desempregadas. Num primeiro momento desenvolvemos um projeto piloto em que estão atendendo 30 mulheres. Hoje elas estão aqui, já tiveram aula de português e capacitação em um curso que elas mesmas escolheram, que foi o de gastronomia, e agora estão lançando uma marca de biscoito francisquito”.

Além delas, outros estrangeiros conseguiram aulas tanto com a Universidade quanto nos programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do governo estadual, e em dois meses já estavam falando português. Segundo Eliana, para as mulheres a situação é mais complicada, até mesmo pela menor escolaridade em relação aos homens.

“O haitiano fala o criolo e o francês, mas o francês só falam aqueles que passaram pela educação formal”, afirma. “Tem alguns que falam muitas línguas, como francês, espanhol, português, inglês... tem gente até com curso universitário. Eu não sei, também, se é porque a mulher vem procurar mais auxilio. Mas sempre foi uma preocupação da casa do migrante em relação às mulheres e crianças”.

O abandono da companheira não foi a realidade de Jean Louis, 28, pelo contrário. Há um ano e seis meses ele veio para o Brasil junto com sua namorada haitiana, de 27 anos. Em novembro do ano passado eles se casaram, e há um ano procuram alguma forma de se sustentar.

“Eu vim porque os haitianos gostam muito do Brasil. Gostam do futebol, e falavam que aqui tinha muito trabalho”, lembra. Em 2010, sua casa foi uma das destruídas no terremoto e, apesar de sua família não ter se ferido, a situação econômica ficou complicada.


Jean Louis (Foto: Letícia Ferro Ferraz / Olhar Direto)

Jean e sua namorada trabalhavam com computadores no Haiti, mas aqui ele conseguiu emprego em um frigorífico, e ela em uma loja de roupas. “Fiquei seis meses no frigorífico, mas eles mandaram muita gente embora. Minha mulher ficou um tempo na loja, mas aí a loja fechou e ela também ficou sem emprego”.

Atualmente, os dois vivem em um quarto alugado, mas frequentemente vão fazer as refeições na Pastoral, já que há cerca de um ano não tem nenhuma fonte de renda. Voltar pro Haiti, no entanto, não é uma opção. “Aqui é ruim porque está em crise, não tem emprego pra ninguém, não é só pra haitiano. Mas lá é bem pior”.

A vontade é diferente para Lumenes. Com saudade dos filhos, de 17, 19, 21 e até oito anos de idade, ele quer voltar para o Haiti. A dificuldade é o dinheiro, já que uma passagem pode custar até mais de cinco mil reais, e, hoje, ele não tem nenhuma fonte de renda além de pequenos bicos de pedreiro. “Quero ir pra lá para pregar o evangelho e falar de Jesus, e também pra ver minha família”, conta. 

Serviço

Quem tiver qualquer oportunidade de emprego, pode entrar em contato com Jean pelo número (65) 98131-3204 e com Lumenes pelo (65) 99258-3064. A Pastoral do Migrante atende pelo (65) 3641-1451.
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