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Quinta-feira, 25 de abril de 2024

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a crueza da realidade

"A selva de pedra cresceu em mim", diz índio que atuou no filme mais radical sobre extermínio Avaeté - A semente da vingança

Foto: Reprodução

A cena mais chocante do filme Avaeté – A semente da vingança contrasta com o choque daqueles olhos melancólicos, que um dia acreditaram que o mundo poderia ser um lugar justo para todos. E a realidade bateu à porta quando poetizou em uma conversa: “A selva de pedra cresceu em mim”. Macsuara Kadiweu é o índio que sobrevive no filme do cineasta Zelito Viana, e o enredo se confunde com a sua própria história, com a história de todos aqueles que perderam sua ligação com a terra. Os dois estiveram presentes no Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, o Cinemato, devido a homenagem ao cineasta e ao filme que é baseado em fatos reais ocorridos em Mato Grosso, aonde o filme foi rodado.

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O filme é de 1985, mas nunca foi tão atual. É com crueza que demonstra uma história real: o extermínio dos indígenas em detrimento de suas terras e riquezas naturais. Baseado no massacre do Paralelo 11 contra os índios Cinta-Larga, algumas cenas do filme são inventadas como a explosão da aldeia, mas outras são reais. Zelito Viana conta que a cena mais chocante do filme é referente a uma fotografia da revista americana Time.

Então, não adiaremos mais. A história é a seguinte, um madeireiro poderoso quer invadir as terras indígenas para ampliar seu poder na região, e para isto, determina o extermínio de uma tribo inteira. O cozinheiro da missão se acovarda e não consegue matar o único menino sobrevivente, que consegue fugir. Enfim, o “Branco”, capitão do mato do madeireiro pega a mãe do menino e a amarra pelos pés a uma árvore, e então, com um facão corta a mulher ao meio.

Esta cena é uma fotografia da Time. Na história real, o bebê leva um tiro na cabeça e a mãe é cortada ao meio com um machado. Avaeté não é fácil de engolir, mas é necessário, é como uma pílula amarga que pode te trazer a cura. Porém, o processo é dolorido. É um soco no estômago e na cara. É um choque de realidade. Sim, tudo isso aconteceu. Mas como Zelito relembra: “o único motivo para o extermínio do povo Cinta-Larga era apenas para não deixar que eles avançassem em seu território, não havia disputa por terras ou madeira”, explicou.

O massacre do Paralelo 11 aconteceu em 1962, mas só veio à tona em 1968. Zelito narra as dificuldades para conseguir produzir o filme na época da ditadura militar. Mas, o longa saiu e ganhou as telas do mundo. Em todas as salas em que foi exibido, Zelito conta que no momento da cena da índia cortada ao meio, a reação é sempre a mesma: espanto.

“A minha cabeça foi feita aí, nesse filme, em 1978 quando entrei em contato com as tribos indígenas, conheci uma realidade nova, porque eu era um ser urbano e conheci o Brasil profundo aqui em Mato Grosso. Infelizmente esta problemática é atual”, disse Zelito.

No enredo, o pequeno índio consegue fugir e também o cozinheiro. Então, começa uma amizade improvável e esta foi a história que Zelito vendeu para que o filme pudesse ser exibido. Mas, ele já emenda que ninguém engoliu a história da amizade.

Avaeté é uma obra de crueza e densidade, um retrato da realidade como ela é, sem deixar dúvidas dos erros cometidos em todas as esferas contra os povos tradicionais. Após o crime contra a tribo do pequeno índio, ele cresceu junto ao cozinheiro, até que denunciam o massacre, e começam a ser perseguidos novamente. Um político denuncia no Congresso, mas não resulta em nada. O dono da madeireira é poderoso demais.

O pequeno índio agora homem consegue resgatar um dos seus únicos amigos, e no fim do filme, consegue vingar toda a dor que passou durante os anos. O tempo todo, o índio está em busca de sua identidade perdida, de sua relação com a terra, com os hábitos do seu povo, com a natureza, a água, o vento. “Eu era o homem livre”, termina o filme.

Mas, a sessão pode ter sido encerrada, só que o problema continua a gritar em nossas caras como um incansável reflexo de nós mesmos: uma sociedade egoísta, individualista, consumista e segregadora.

Avaeté é essa busca por tudo o que se foi e não irá voltar. Avaeté é um pedaço de tempo que se foi, mas nunca deixou de ser. Avaeté é o grito contido da dor, da morte, do sangue derramado.

Macsuara deu vida ao índio valente que conseguiu vingança pelo extermínio de seu povo. A sua história se mescla com Avaeté, porque sua pele é o símbolo do sofrimento de toda uma vida. A emoção tomou conta de si ao rever Zelito e o filme feito na juventude. Seus olhos marejados revelam a imensidão de uma alma atormentada, inquieta e irrequieta.

“Teria que ter muitos Zelitos para contar a nossa história, porque a representação do índio no cinema fica em 3º plano, é como um figurante da realidade. O 1º plano é da natureza e o 2º é dos exploradores. Não existe uma lente que identifique o âmago da cultura indígena nativa”, disse Macsuara.



E solta “invisible people”. É assim que Macsuara traz à leitura dos indígenas perante o mundo: “as pessoas invisíveis”. “É uma bolha psicológica que criaram para observar e preservar a natureza e isso é a maior mentira. A Internet também. O olho não funciona, a boca não funciona, só o que funciona é a solidão”, sentenciou.

Consciente dos problemas indígenas, Macsuara possui uma análise crítica e política sobre a situação. E lamenta que atualmente, a luta perdeu força, e a busca pela preservação da identidade também. No filme, o índio vai atrás do próprio eco para encontrar a si mesmo. “É um massacre moral, cultural, que derruba o esteio. As lutas enfraqueceram. Mataram todos os heróis”, lamentou.

Então, para finalizar a entrevista, questiono Macsuara sobre como é para ele, ter saído da aldeia, de perto da natureza e adentrado o universo urbano, e com os olhos sérios e calejados me responde com uma dor que se percebe na voz: “A selva de pedra cresceu em mim”, e emudece. O silêncio toma conta de nós e só a solidão pode funcionar.
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