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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

Notícias | Literatura

Discurso de recepção à acadêmcia Marta Cocco: O novo sempre vem

(Por Eduardo Mahon)
Exmos. Srs. Acadêmicos,
Exma. Sra. Marta Cocco,
Senhoras e Senhores,


O artista Pablo Picasso que rompeu com escolas anteriores e promoveu a desconstrução do tradicional belo, simétrico e coerente, ao chegar à velhice, afirmou: “Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisei uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças”. De forma concisa, o espanhol nos legou uma grande lição – não é difícil ser prolixo, criptografado, apelar para o clássico e sua interminável erudição bibliográfica e icnográfica, sacralizando as formas em altares barrocos: difícil mesmo é ser simples.

O artista, e por que não?, o escritor, começa querendo impressionar os círculos íntimos com a acuidade excessiva no academicismo. Muita tinta, muito rigor. Letra amarrada, engessada, autocensurada. Pinturas difíceis, sentidos densos, palavras obesas. Depois, ao vencer o tempo, procura a sofisticação, lapidando excessos, castrando o rebuscamento até que, galgando maturidade – não a velhice, mas a maturidade real – percebe que deve comunicar-se para além do espelho: volta as costas para o que fez e se refaz novo, livre, aberto. Para não morrer afogado de si, rejeita o Narciso. Humaniza-se. Condensa-se. Simplifica-se. Vira criança.

A escritora Marta Cocco chegou madura a esta Academia de Letras: não quer a ovação erudita, porque já trouxe com ela as palmas das crianças. Esta Casa de Letras, por sua vez, ao sufragar Marta Cocco, oferece uma mensagem esperançosa: não aceita a “lanterna da popa”2, como diria nosso saudoso confrade Roberto Campos. Não se limita apenas a acompanhar a evolução da sociedade. Assume a condição de vanguarda. Quer lançar luz pela proa, convidando para brincar o que há de inovador em cada um de nós. Essa é a mensagem: viver é invenção e manter-se vivo é se reinventar. Aliás, até os mortos estão entre nós por força do imaginário. Quem não sonha, não cria, não inventa, morreu e não sabe.

Deixemos aos jovens a missão de identificar o ponto de ruptura – superar o romântico complexo da era de ouro, pelo qual o passado é percebido sempre melhor do que o presente. Não é verdade. A eleição de uma escritora que transita pela poesia e tem a coragem da simplicidade infantil indica que belle époque acadêmica não ocorreu num passado mágico, congelado na memória afetiva. A belle époque é um estado contínuo, dependendo de como nos sentimos defronte à contemporaneidade. Estaremos saudosos? Estaremos satisfeitos? Estaremos felizes? Convém não conjugarmos em demasia o pretérito imperfeito e, com ainda mais acuidade, o mais que perfeito. Nosso tempo não foi, não seria, nosso tempo é. Um tempo zap, um tempo chip, um tempo clic, um tempo de concentração descontraída3.

Há muito romantismo rondando instituições. Estas devem mesmo ser defendidas, não somente pela força da tradição. A Academia Mato-Grossense de Letras deve ser abraçada pela sociedade porque representa diálogo, respeito, abertura e conservação. Não são valores mutuamente excludentes e sim complementares. Evidentemente que o tempo é relativo numa instituição de caráter vitalício. Todos nós não abrimos mão das tradições, mas não queremos viver enclausurados no passado autorreferente. É por isso, senhoras e senhores, que a imortalidade não pertence senão à Academia Mato-Grossense de Letras. O resto é lembrança e encantamento.

Há crítica. Como não haveria? Não raro, o cultivo da língua e das regras gramaticais é apontado como reduto aristocrático. Um sofisma, todavia. Dominar a regra culta não significa dobrar-se a ela. Muito ao contrário: há um gosto especial em subvertê-la. Quero lembrar o início da fala: o artista que pintava como criança não só dominava a pintura clássica como transcendeu as convenções em nome da identidade própria. Há maturidade nos pássaros de Miró, reflexão nos touros de Picasso, genialidade em Kandinsky, técnica irreverente em Andy Warhol, enfrentamento semiótico em Roy Lichtenstein: a simplicidade não significa o desconhecimento da regra culta e sim a opção do artista culto. A mirada crítica sobre o conservadorismo não vê que ele já foi modernidade e a própria linguagem moderna passará a ser, no futuro, cânon literário. O contemporâneo de hoje é alterar as relações de poder para relações de saber. Que venha o amanhã nos desdizer e reinventar o que julgamos ser bom e belo.

Com a idealização romântica, surge o pessimismo contemporâneo. Citemos Cazuza, o poeta exagerado: “eu vejo o futuro repetir o passado/ eu vejo um museu de grandes novidades”4. Será? Será que estamos condenados como a ninfa Eco a viver repetindo a si mesma? Há quem pense que não. Há na própria música popular brasileira o contraponto no qual se inspira essa peroração: “minha dor é perceber/ que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos/ ainda somos os mesmos e vivemos/ ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais/ nossos ídolos ainda são os mesmos/ e as aparências não enganam não/ você diz que depois deles/ não apareceu mais ninguém./ Você pode até dizer/ que estou por fora/ ou então/ que eu tô inventando/ Mas é você que ama o passado e que não vê/ É você que ama o passado/ e que não vê/ que o novo sempre vem”5.

Na sátira l’Optimisme, Voltaire nos conduz pela decepção do protagonista com as lições filosóficas que estavam em voga plasmadas no mentor Pangloss. Dizia o eterno otimista: “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Cândido, ao perceber desolação no caminho, dá uma guinada na percepção da realidade e evolui para concluir: “precisamos cultivar o nosso jardim”. Noutras palavras: o que nos resta é o presente. Não vivíamos num passado melhor e nem tampouco o presente é decepcionante. Tenho certeza em afirmar que a homenagem aos que nos precederam é a produção inovadora e não o contínuo molde estético. Como cantou Chico Buarque, até mesmo Deus não é narcisista: “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador// E se o Criador/ Inventou a criatura por favor/ Se do barro fez alguém com tanto amor/ Para amar Nosso Senhor/ Não, Nosso Senhor/Não há de ter lançado em movimento terra e céu/ Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel/ Pra circular em torno ao Criador”6.

Nossa Academia já fez felizes ensaios prenunciando a festa do tempo-presente: o sufrágio de Silva Freire, por exemplo, coloriu de irreverência o mundo literário mato-grossense por consagrar a assimetria, o concretismo, a ruptura com o sisudo erudito e, sobretudo, valorizar a linguagem popular, subversiva e subterrânea. Afinal, o que são as ‘letras’ de uma Academia de Letras? A posse de Marta Cocco nos dá uma resposta: são todas as letras. Dos jornalistas, dos romancistas, dos cronistas, dos poetas, dos críticos, dos historiadores, dos juristas. Há espaço para mais, muito mais. Aqui terá assento a criança que chora, que ri e que brinca na novel acadêmica, assim como escorre das paredes a sopa de letras grafitadas nas mais diversas fontes.

Ao contrário do que pensam alguns, não vivemos nós num olímpico parnaso. Atrevo-me divergir da semiótica de D. Aquino ao consagrar o retrato de beletristas. Os acadêmicos compõem uma polifonia intelectual, polimorfia estética, policromia temporal, formando um caleidoscópio em que o novo é sempre uma cor a mais na composição. Nem sempre a letra é bela. Pode ser triste, pode ser feia, pode ser dissonante. Não temos o compromisso da simetria métrica, da narrativa-epopeia, da poesia-monumento. Em literatura, como se sabe, o “certo” quase sempre não é o “exato”. Refletindo com vagar, o literato verdadeiro tem muito de antiolímpico.

As letras que Marta Cocco vai nos acrescentar também são plurais. Professora, debatedora, agitadora cultural, participou com capítulos em livros e artigos em revistas científicas, comentando a obra de vários autores mato-grossenses, como é o caso da Antologia Poética Nossas Vozes, nosso Chão, na qual analisou a obra da recém empossada Lucinda Persona. No voo solo, enriqueceu Mato Grosso com os livros: Partido, de 1997; Meios, de 2000 obra vencedora do Prêmio Mato Grosso Ação Atual; Sete Dias, de 2007; Sábado ou Cantos para um dia só, de 2011; Lé e o Elefante de Lata, de 2013; e finalmente Doce de Formiga, de 2014, cuja provocação é evidente: “No meio do caminho tinha uma pedra/ e daí/ eu tropecei/ e caí./ Tinha uma pedra no meio do caminho/ e eu andando distraidinho.../ Ai, Que foi que eu fiz?/ Tem sangue no meu nariz/ No meio do caminho uma pedra tinha/ - socorro, mamãezinha,/me cuida senão eu morro!/ - Foi só um arranhão/ lava com água e sabão/ No caminho do tinha pedra uma meio/ acho que o susto é que foi bem feio7”. Eis o notório compromisso de reinventar o que já chamamos de “passado moderno”. Nas frestas do velho, surge o novo a abrir janelas sobre o clássico que já foi, no passado, contemporâneo. É uma provocação, uma homenagem, uma desconstrução ou tudo de uma única vez?

Os livros de Marta Cocco meditam, interrogam, duvidam: são eles o anticlímax do classicismo. A confreira toma partido, agita o mundo em derredor, busca a superação. Revolta-se com aparências, com as sujeições, com o desconforto do pós-moderno, flerta com a euforia e a crueza existencial. Eis as palavras dela: “Aos que ignoram o preço/ a taxa, o rótulo, a intenção/ e vivem diluídos/ numa infame poção/ submetendo-se aos feitiços./ E aos que se rebelam/ chamando a nossa atenção para a vida/ à custa da própria./ Porque da mais ingênua alegria/ à mais profunda tristeza/ é turva a clareza/ é infinita a poesia”8.

Nossa nova confreira enxerga o mundo por três prismas: o científico, porquanto o curriculum é balizado com mestrado e doutorado em letras e linguística, o infantil e o poético. Verso livre e contemporâneo, mas sempre inquieto: “Incendiar o rio/que noites e dias/me atravessa/Alvejar o ponto/o desequilíbrio/a fresta por onde a claridade indicia/um cheiro de vida./Arder em ondas e correntes/chegar à grandeza/desembocar:/bocas e dentes na impetuosidade/expressa/do teu olhar”9. A poeta segue exigente, exigindo, panfletando com coerência por toda a obra que produziu. Cobra de si, cobra do mundo. No poema “requisito”, temos as condições da existência da confreira: “Que seja assim/ imprevisível/ inconstante/ inaudível/ inquietante./ Ansioso/sem ser pontual/ Displicente/sem deixar de agradar./ Como o vento./ E os melhores desejos”10.

Daí exsurge uma intelectual rebelde com as formas, os limites e as convenções. Quer propor uma nova estética, mais elástica e menos estática.

Marta Cocco pisca para o mundo, como diria Monteiro Lobato. Piscou para nós da Academia de Letras. E nós para ela. Quer viver, não sem questionar, o presente, o imediato-agora, o tempo-já. Lembra em tudo a irreverente boneca Emília "– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais [...] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?11". Então, pisque para nós, Marta Cocco e se faça o pirilampo da modernidade.

Senhoras e Senhores, das várias formas de imortalidade acadêmica, da meramente protocolar à verdadeira consagração popular, quem escreve para crianças leva vantagem: toca o coração, cria sonhos, entrega capa e espada a pequenos heróis, arquiteta paixões improváveis entre nobres e plebeus, diálogos impossíveis entre formigas gulosas, batalhas etéreas entre sapos e elefantes de lata. Enfim, no fértil imaginário de autores infantis, “reinações12” são inventadas e se tornam mais reais do que a realidade. Quem fica na memória do jovem, esse sim, vira imortal. Tudo passa – o viço da pele, a agudeza mental, a potência da carne – mas não a emoção: o humanismo sempre sobreviverá na humanidade.

Façamos uma barganha, senhora acadêmica Marta Cocco. Eis o abrigo que a V. Excelência escreveu que deseja: “Nesse instante/ que eu desejei profundamente/ eterno/ uma luz foi acesa./ Cantos surgiram voando/ janela adentro/ uma mão afável e boa/ despregou certa água em meu rosto/ e/ com voz de pai e mãe/ soltou as palavras:/ volta/ pra casa”13, do livro Sábado ou Cantos para um dia só. Eis aqui sua nova Casa. Fique à vontade em todos os cômodos: no estar do passado, no hall do presente, na varanda para o futuro.

Para V. Excelência, dedico uma poesia: Impreciso/ não sabia nada/ O quanto/ Nem o quão/ Quanta coisa há/ Quanta coisa não// Tanta palavra havia/ Para cada qual/ Como dizia o quê/ Quanto falava quão// Qual nominava/ Quando calava/ O quão mentia// Impreciso não sabia nada/ Quanta palavra/ Que sentido tinha/ Qual precisava/ O quão impreciso havia.”14. Pela acolhida, o que pedimos em troca? Empreste os seus olhos de criança para que brinquemos com nossa própria fantasia. Eis aqui a sua casa. Cumpre-se o presságio do poeta: o novo sempre vem. Traga-o consigo, ainda menino e sem compromissos; e que V. Excelência seja aqui tão bem-vinda como bem-vindo é o futuro.
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