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Terça-feira, 23 de abril de 2024

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Arco-íris

Pioneira em MT, ala LGBT completa quatro anos e detentos lembram agressões, exploração sexual e até jejum forçado

Foto: Rogério Florentino Pereira / Olhar Direto

Duda

Duda

Os longos cabelos, a sombra e o delineador nos olhos, e a base nas unhas revelam uma conquista recente. As camisetas amarelas, feitas para uniformizar, já não conseguem forçar uma identidade errada: acinturadas e com gola mais baixa, marcam a feminilidade da vestimenta.

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Duda Marques e Sandy são travestis do Centro de Ressocialização de Cuiabá, o antigo ‘Carumbé’, e assim como diversas outras detentas, sentiram na pele o que é ser obrigada a adequar-se a uma identidade de gênero que não é a sua para poder sobreviver na cadeia.


Duda (de frente) e Sandy (de costas); (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto) 

Reclusa há quatro anos e quatro meses, Sandy chegou a viver na ala evangélica do Centro de Ressocialização, e ali precisava seguir as regras das igrejas: “Tinha que dobrar o joelho e ficar de uma a quatro horas orando… tinha que fazer vigília à noite, e jejum também. Teve um dia que eu fiz jejum das sete da manhã às três da tarde. E eu pensava: jejum pra quê?”.

E ela não é a única que tem relatos do passado na ala. Rael da Silva Cisi, homossexual, está há cinco anos no Centro e conta que seu principal problema era que os evangélicos estavam o tempo todo tentando tirar dele um “espírito maligno”: “Eles passavam dias e noites dizendo que precisavam salvar a minha alma, e me isolavam. Eu tinha que comer, dormir e tomar banho separado, pois eles diziam que ficar junto com os outros homens seria uma tentação. Me poupe, né? O que eles têm eu também tenho”.

Em junho de 2011 foi criada a ala arco-íris no Centro de Ressocialização. O projeto foi pioneiro no estado e a unidade ainda é a única de Mato Grosso que oferece um local específico para acomodação de pessoas que têm identidade de gênero diferente da determinada biologicamente (travestis e transexuais) ou orientação sexual homossexual ou bissexual. Ali, segundo informações da coordenação, eles ficam em conteiners com quatro internos em cada um (a equipe do Olhar Direto/Conceito não foi autorizada a entrar na ala). Nos momentos de trabalho, no entanto, não há distinção: internos da ala arco-íris e das outras trabalham juntos.

Além da ala arco-íris, existe no Centro de Ressocialização a ala evangélica e a ala chamada de “convívio” (onde ficam os detentos que preferem não estar nas outras). Atualmente, na ala evangélica existem representantes das igrejas Deus é amor, Assembleia de Deus e Caminho para Todos. Cada igreja possui seus pastores e obreiros, todos reeducandos, e quem mora ali tem que seguir as regras determinadas por eles – por isso Sandy, Rael e Duda tinham de orar, vigiar e jejuar.

Mas não é por ser uma área religiosa que a violência era inexistente. Duda lembra que os assédios eram frequentes: “Olhares… às vezes ‘bulinavam’ a gente à noite, porque a gente é obrigado a dormir do lado de outros homens, né? E alguns estão há muito tempo sem visita… muitos mandavam bilhetinhos”. Sandy também se sentia ameaçada: “Eles mandavam bilhete falando da minha boca, da minha bunda… e se eu entregava o bilhete para o pastor ele me dizia que eu estava mentindo. Aí eu entreguei na coordenação do presídio e disse que se acontecesse alguma coisa comigo eles já estavam sabendo”.

A opção de sair da ala evangélica existia, mas segundo as reeducandas, era como trocar o mal pelo pior. No ‘convívio,’ os homossexuais e as travestis não tinham direitos: “A gente não pode dar opinião de nada, não somos dignos de falar alguma coisa”, contou Rael. Para Sandy, estar ali era uma sentença: “Você está ali para ser escrava, seja sexual, seja de trabalho mesmo”.

A criação da ala arco-íris veio como consequência de todas essas reclamações. Clóvis Arantes, coordenador da Organização Não Governamental Livre Mente e responsável por acompanhar este projeto, conta que foram as pessoas que trabalhavam no Centro como psicólogos e assistentes sociais que identificaram o problema: “Eles traziam denúncias de não cumprimento dos direitos humanos. Por exemplo, travestis eram feitas de escravas sexuais, tinham que trocar sexo por favores, ou por trabalho”.


Clóvis Arantes, coordenador do Grupo Livre Mente (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

A busca por mais direito e dignidade na reclusão vinha dos recuperandos e das recuperandas, que aos poucos tiveram seus pedidos atendidos por meio destes profissionais e do trabalho da Livre Mente. “No começo as pessoas não entendiam muito o porquê de reinvindicar um espaço exclusivo [tanto os internos heterossexuis e cisgêneros (pessoa que se reconhece como pertencendo ao gênero que foi designada quando nasceu) quanto os agentes prisionais], mas essa consciência foi se construindo”, explica Clóvis. O resultado, após quatro anos desde a ideia inicial, foi uma diminuição da violência e uma “criação internamente de um espaço de respeito aos LGBT”.

Tudo isso, no entanto, é feito no acordo verbal. O projeto ainda não foi publicado, e não existe legalmente, o que dificulta a implantação deste sistema em outros centros de ressocialização e também deixa os direitos adquiridos na corda bamba: “Hoje nós temos uma coordenação que é favorável, que nos ajuda. Mas não sabemos o que vai acontecer amanhã, se ela for trocada, a próxima pode não manter a ala, porque não é lei”, explica Clóvis.

Winkler Teles, diretor do centro, entende a importância da ala como forma de garantir os direitos: “A ala é separada também para manter a integridade física e moral dos internos”. No entanto, eles devem seguir certas regras para estar ali: “Para ficar na ala é preciso estudar ou trabalhar e ter bom comportamento”, explica. 

E os internos concordam com a prática. Sandy conta que quando um homossexual ou uma travesti chega na ala “arrumando confusão”, o castigo é descer pra ala evangélica ou pro convívio por cerca de cinco dias. E ninguém quer ficar ali. Assim como em outros centros, são cortados os cabelos das travestis, e elas são obrigadas a usar roupas masculinas e a serem chamadas pelo nome de batismo.

Este foi o caso, por exemplo, de Michely. Ela teve os cabelos raspados no presidio Pascoal Ramos, e chegou a viver na ala evangélica e no ‘convívio’ daquele presídio: “Eu prefiro o convívio. Lá a gente não pode ficar sozinha com outros homens, mas pelo menos é diferente da evangélica. Na evangélica eu tinha que orar, e se não orasse ficava sem comer”, conta. “E quando eu tentava mandar carta pra coordenação, o pastor tinha que ler antes, e nunca entregava”.


Michely, que teve os cabelos raspados na Penitenciária Central do Estado (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Morando na arco-íris, os internos e internas têm que trabalhar. Rael trabalha fazendo cuia de tereré, Sandy faz artesanato, trabalha na marcenaria, e faz limpeza “pra não enjoar”, e Duda também trabalha na marcenaria e na limpeza. O trabalho no Centro não tem remuneração, funciona no esquema de remissão: para cada dia de trabalho, são redimidos três dias de pena. A não ser que o trabalho seja artesanal e a família do interno/a financie os materiais. Nestes casos, o lucro fica para a família.


Sandy costurando (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

A mãe de Sandy, por exemplo, mora em Goiânia, mas sempre que pode vem visitar a filha, trazendo presentes e roupas. “Muitas vezes ainda não deixam ela entrar com roupa feminina e maquiagem. Quando é dia de trazer, por exemplo, duas cuecas, eu peço duas calcinhas. Mas já teve vez do pessoal lá na frente fazer graça, esticar a calcinha na frente de todo mundo”, conta a interna.

Maquiagem e esmalte também são um problema. O que as travestis e transexuais conseguem são presentes das agentes prisionais: “Aqueles que já estão acabando, sabe? Que elas não querem mais”, conta Duda. Para ela, a situação é um pouco mais complicada porque não recebe visitas: “Minha visita está aqui dentro”.


Duda e seu marido Emerson (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)


Rael e seu marido Mauro (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Duda é casada com Emerson Marques há dois meses. Seu casamento foi o primeiro homoafetivo do Brasil realizado dentro de uma penitenciária, e teve presença da imprensa e de representantes o governo. É por causa de seu marido, também, que Duda não gostaria de estar em uma penitenciária feminina. (No Rio de Janeiro, foi aprovado em maio que as travestis e transexuais possam escolher ir para a ala feminina da penitenciária).

Sandy também não quer: “Deus me livre de mulher. Mulher menstrua, tem TPM, é chata demais. Prefiro ficar aqui com os guri”, afirma. Rael complementa que nas penitenciárias femininas o assédio é muito grande: “Elas estão há muito tempo sem homem, podem atacar as travestis. Eu mesmo esses tempos fui fazer uma peça de teatro numa prisão feminina e as mulheres ficavam me chamando o tempo todo”, conta.

Poder transferir travestis e transexuais para penitenciárias femininas realmente não faz parte dos planos atuais da Livre Mente. A ideia é expandir a conquista da ala arco-íris para outras penitenciárias do estado, já que com a burocracia fica difícil transferir internos do interior para a capital e, acima de tudo, conseguir formalizar o espaço e documentar o projeto. “As pessoas tem que entender que isso não é um benefício a mais aos LGBT. Eles ainda têm que trabalhar, ter bom comportamento e seguir todas as regras do centro primeiro. É apenas um espaço separado para garantir a integridade”, explica Clóvis Arantes.

O objetivo é, portanto, manter a penalização dos internos pelos crimes que cometeram, mas evitar que eles sejam penalizados duplamente. Quando uma travesti chega a um centro de ressocialização, ela é penalizada por seu crime e também por sua identidade de gênero. Cortar os cabelos de Sandy, Duda, Michely, Rackelly e tantas outras, podia ser apenas um ato mecânico para agentes e outros internos. Mas era como se tirassem delas o que elas têm de mais precioso, ou o pouco que ainda lhes resta: sua identidade.

Violência no passado

Winkler Teles, diretor do centro, garante que não acontece mais nenhum tipo de agressão no Centro de Ressocialização, como os relatados por Sandy, Duda, Rael e MIchelly, e alega que as internas travestis e transexuais podem receber roupas femininas e de maquiagem.
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