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Sábado, 20 de abril de 2024

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cultura do estupro

Cuiabana vítima de estupro coletivo está há seis anos à espera de Justiça

Foto: Gabriel de Paiva / Ag. O Globo

Caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro reascendeu debate sobre a cultura do estupro

Caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro reascendeu debate sobre a cultura do estupro

Adolescente, desacordada, estuprada. Os agressores filmam e sem pudor nenhum jogam as imagens internet para contar “vantagem”. Parece familiar? A história trágica é mais comum do que pode parecer. Neste caso, a vítima não ganhou apoio de parte da população e o caso não mobilizou ninguém, como na recente violência ocorrida no Rio de Janeiro. O crime aconteceu há seis anos na periferia de Cuiabá. Sem repercussão, também não teve justiça. Mas algo parece estar mudando. As vítimas, ora apontadas como culpadas pela violência sofrida, têm perdido o medo de denunciar. Mulheres de todo o país tem se juntado para colocar em xeque a cultura do estupro.

Em 2009, quando tinha apenas 16 anos, Nayara Rubbya viveu a experiência mais dolorosa de sua vida. Quase sete anos depois, ainda não viu justiça. Ela não era acostumada a beber e, depois de tomar vinho na casa de uma amiga, acabou inconsciente. Acordou horas depois, de vestido e cabelos molhados, dentro do quarto de uma amiga. No dia seguinte, quando chegou à escola, ficou sabendo que tinha sido abusada sexualmente por três rapazes enquanto dormia, e que tudo tinha sido filmado. Para piorar, os agressores postaram o vídeo no Youtube.


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No vídeo, que dias depois já tinha se espalhado pela escola – localizada em um bairro periférico de Cuiabá – a garota era jogada da cama para o chão três vezes, sem esboçar nenhuma reação. “Só consegui assistir até essa parte, pois a coordenadora da escola mandou eu entrar para a sala de aula. E quando saí para o intervalo, todos estavam assistindo o vídeo e não aguentei ver aquilo e comecei a chorar”, contou Nayara ao Olhar Conceito.

Apesar de Nayara ter ido à delegacia denunciar o abuso no mesmo dia em que sua mãe soube do ocorrido, hoje, seis anos depois, o caso ainda não foi encerrado. Uma audiência ainda está marcada para julho. Os três rapazes eram conhecidos dela, sendo que um deles era ex-aluno de sua mãe, que dava aula na mesma escola de Nayara, e outro era filho de sua professora na época. Segundo a garota, que hoje tem 23 anos, nenhum deles foi punido de nenhuma forma.

Cinco anos antes, também em Cuiabá, a jornalista Laura Petraglia foi atacada no estacionamento do trabalho, ao final do expediente. Um homem armado com uma faca a derrubou, rasgou suas roupas, e bateu muito nela para que ficasse quieta enquanto ele tentava estuprá-la. Foi só no momento em que ele tampou sua boca com as mãos que ela conseguiu mordê-lo, e ao entrar em uma luta corporal com o agressor, chegou a ficar com a orelha totalmente machucada.

Depois de algum tempo de embate, Laura foi salva por outro homem que entrou no local, e foi levada para a delegacia para prestar queixa. Como o estupro não foi consumado, graças à resistência da vítima, no entanto, foi muito difícil conseguir que ele fosse condenado. Segundo a jornalista, ele chegou a ficar preso por um tempo, mas ela não sabe se ainda está ou se já foi solto – e prefere não saber.

Nayara e Laura são apenas dois casos dentre milhares que acontecem no Brasil todos os anos. De acordo com dados do 9° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2015, no ano de 2014 foram 47.646 casos de estupro registrados no país. No entanto, esse número corresponde a apenas 35% dos casos, que são os notificados à polícia. Ainda segundo o anuário, 90,2 % das mulheres têm medo de sofrer violência sexual. Só em Mato Grosso, foram 1300 casos de estupro e 141 casos de tentativas.

Na última semana, o país voltou sua atenção a um caso que aconteceu no Rio de Janeiro, no qual uma garota de 16 anos foi estuprada, e o ato ainda foi filmado e publicado nas redes sociais. Qualquer semelhança com o caso de Nayara não é mera coincidência. A publicação do vídeo do crime mostra que o estupro – principalmente o de vulnerável – ainda não é considerado, por muitos, como algo errado. Também por isso, diversas pessoas buscam motivos e brechas para culpar a vítima – em todos os casos citados.

Lindinalva Rodrigues, promotora de Justiça do Núcleo de Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Cuiabá, explica que a culpabilização da vítima é consequência da cultura do estupro. Em suas palavras, “a cultura de que a mulher é a responsável pelo próprio crime que ela sofre”.


Lindinalva Rodrigues, promotora de Justiça (Foto: Rogério Florentino Pereira / Olhar Direto)

Trabalhando com casos de violência doméstica, a promotora já lidou com todos os tipos de crimes contra a mulher e relembra a dificuldade que a sociedade tem de admitir que o estupro acontece também, e na maioria das vezes, dentro de casa.

“Nós temos casos de mulheres arrastadas pelo cabelo porque se negam à prática sexual daquela forma, e naquele dia, e naquele momento que o companheiro deseja. Num dado momento elas denunciam, mas denunciam quando não aguentam mais a inserção de legumes, objetos, coisas que elas não aceitam, na vagina, no ânus, coisas assim que não fazem parte daquilo que elas aceitam como natural. Já tivemos casos de mulheres que se negam a ter relação sexual com o marido que tiveram parte do rosto arrancada a dentadas”, conta.

O relato pode parecer surreal para quem vê de fora, mas para quem lida com isso todos os dias, é a dura realidade. Nos casos em que o abuso sexual acontece dentro de uma relação amorosa, as mulheres ainda passam pela humilhação de ter de ‘se explicar’ na delegacia. Lindinalva continua: “Nós temos hoje uma cultura de machismo pelos operadores do direito que é o maior empecilho para o enfrentamento à violência de gênero. Onde num dado momento parece que tudo se volta contra a mulher. E nos crimes de estupro, se elas não disserem tudo, exatamente como foi, e repetirem isso reiteradas vezes, sem se esquecer de nenhum detalhe ela vai acabar, eles vão acabar dizendo que ela não está corroborando com essa prova”.

Priscila Mendes, participante do coletivo feminista Frente Pela Vida das Mulheres, também enxerga a ‘cultura do estupro’ como causa da maior parte desses crimes. “A cultura do estupro é composta por discursos 'simples', cotidianos, quase ingênuos, que sustentam a sociedade patriarcal (em que o homem tem poderes e as mulheres são exploradas). Esses discursos se baseiam, especialmente, na crença (absurda!) de que o homem não teria controle de seus impulsos sexuais e que a mulher não tem autonomia sobre o próprio corpo, nem tem direito ao sexo. Mas isso não é assim tão claro, é silencioso, repetido”, conta.


Coletivos feministas organizam manifestação para essa quarta (1), às 16h (Foto: Reprodução / Facebook)

No caso das esposas, a ideia de que sua obrigação como mulher seria ceder sexualmente ao marido, mesmo quando não quer. No caso do estupro de vulnerável, a ideia de que ela ‘se embebedou porque quis’, e por isso é a culpada. Nos casos de estupro que acontecem na rua, a ideia de que a mulher não estava vestida de forma adequada, que estava provocando.

“A gente vê que todo dia que a gente está num mundo eminentemente masculino e machista. Dentro do judiciário, dentro do Ministério Público, e nas esferas de poder. Onde eles partem sempre do pressuposto de que a mulher está mentindo pra prejudicar os ‘coitados’ dos homens e acabar com a vida deles. Eles não conseguem perceber que a mulher não iria em uma delegacia de polícia pra ‘passear’ e expor as suas mazelas a esse ponto se não fosse verdade”, comenta Lindinalva.

Para a promotora, essa dificuldade de denunciar os casos de abuso sexual sofridos é a maior causa do silêncio das mulheres. Como foi mostrado no Anuário de Segurança Pública, apenas 35% dos casos de abuso são denunciados. Assim, segundo ela, essas mulheres são abusadas ‘duas vezes’. Uma quando sofrem o crime, e a outra quando são duvidadas.

Apesar dos ainda altos índices e da cultura de estupro latente, as coisas estão mudando. Antes mais silenciadas, as mulheres – unidas principalmente nos coletivos feministas – estão aos poucos ‘mostrando as caras’. No caso da garota do Rio de Janeiro, por exemplo, assim que o vídeo foi publicado na internet foram feitas mais de 800 denúncias por mulheres de todo o país.

“As mulheres que sabem identificar o tanto que a mulher sofre na nossa sociedade patriarcal, que não vêem como ingenuidade ou piada a crueldade feita com a vítima em questão puderam denunciar o crime. Primeiro para usuários, depois para a investigação. E apenas por causa dessa mobilização (mais de 800 denúncias) que o crime veio à tona e, acreditamos, esteja havendo acompanhamento midiático e preocupação do Rio de Janeiro. Ela é pobre, moradora de favela. Seria apenas mais um número”, afirma Priscila.

Para chamar ainda mais atenção para o caso, mulheres de todo o Brasil estão organizando protestos para a próxima quarta-feira (1). Com o nome ‘Por Todas Elas’, essas manifestações serão contra a cultura do estupro, e um grito de basta para a violência sexual sofrida todos os dias. Em Cuiabá, o Ato contra a Cultura do Estupro acontece a partir das 16h na Praça Ulisses Guimarães.

“Nós ainda temos a mulher no imaginário masculino como alguém que existe para servir o homem sexualmente, porque essa é a imagem que a grande mídia vende da mulher. Da mulher pelada pra vender cerveja, seminua, e outros itens. Então nós ainda temos que lutar contra essa grande mídia que vende o corpo da mulher como um pedaço de carne a ser consumido. É necessária no Brasil uma reflexão de toda a sociedade pelo fim da cultura do estupro. Para que a sociedade tome consciência de que a culpa nunca é da vítima. E que não é o tipo de roupa que a mulher está usando, ou o seu comportamento que é capaz de estimular algum tipo de abuso sexual”, finaliza Lindinalva.
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