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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Comadança

Fazendo da arte um alimento diário, grupo de dança de Cuiabá traça panorama local do setor e fala de experiências

Foto: Reprodução/ Facebook

Fazendo da arte um alimento diário, grupo de dança de Cuiabá traça panorama local do setor e fala de experiências
A vida do artista em Mato Grosso tem melhorado com surgimento de circuitos e reabertura de espaços culturais, mas a luta pela valorização do artista ainda continua, para que a atividade seja reconhecida também como meio de trabalho e sustento. Nesse caminho de resistência e persistência estão os dançarinos do “Comadança”, grupo de dança contemporânea que quer tornar a arte do corpo um alimento para a consciência humana.

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“Não é uma coisa só para os finais de semana, para se vivenciar de vez em quando. A arte e o corpo estão em tudo no nosso dia a dia, porque não colocá-los na mesa de casa? Por isso a gente chama Comadança, para ser comido. Nós queremos nos tornar necessários à cidade, ao mercado, a população precisa ter essa vontade de consumir, como a comida, todo dia a gente vai ao mercado. Nós acreditamos que a arte está entre os pontos de necessidade, do bem viver”, explica Clodoaldo Arruda, um dos dançarinos do grupo.

Criado em 2009, o grupo de dança Comadança já passou por várias formações até a atual, masculina por acaso, composta pelos dançarinos: Alexandre Cruz, Clodoaldo Arruda e Vinicius Santos. Em 2016 o trio circulou por algumas cidades de Mato Grosso, como Alta Floresta, Barra do Bugres e Cáceres, experiência que contribuiu para dimensionar o território, a cultura e a receptividade do estado.

“O desdobramento do circula é muito importante para gente, é o segundo ano que somos contemplados. Fizemos o Amazônia das Artes do Sesc. Nem todas as cidades têm equipamentos cênicos, os que têm são mais ligados a show musical com luz fria, led. Mas é interessante fazer a leitura de como nós somos em Mato Grosso, como a gente cria para essa demanda. Nos adaptando com relação ao espaço, porque nem todas as cidades tem teatros”, diz Clodoaldo.


foto: reprodução/ facebook

Em 2017, as visitas passadas deram tantos resultados positivos que o grupo volta para Barra do Bugres e Alta Floresta para novos trabalhos. “Estou indo para Alta Floresta para fazer preparação corporal de um grupo de lá. E isso nos carimba da importância do exercício, é bom estar estudando, mas se a gente não coloca isso na rua, no mercado, não tem porque também”, relata Clodoaldo, que informa mais três cidades que receberão o grupo este ano. “Vamos fazer Tangará, Primavera do Leste e Rondonópolis em 2017”.

A cidade como extensão do corpo

“A arte é subjetiva, mas é também palpável no sentido técnico do fazer mesmo. Quando você fala de dança, você pensa num corpo bonito, mas não, a gente falou ‘vamos pensar no corpo que a gente tem’. E quando a gente fala no corpo que a gente tem a gente está incluindo a cidade de Cuiabá, o estado de Mato Grosso, a política, a economia, por que é isso que a gente tem. É nesse palpável que a gente pensa, que está incluso a vida comum da cidade”, descorre Clodoaldo.

E para que o espetáculo suba ao palco é necessário esforço e dedicação nos estudos teóricos também, por isso o grupo se reune todos os dias para dialogar sobre os temas do cotidiano que atravessam a sociedade moderna. "Nós começamos a perceber que era preciso fincar o pé na pesquisa, não só de corpo, mas de estudo mesmo, de leitura. Temos um encontro semanal de pelo menos quatro horas por dia, para lidar com o corpo e com as questões. E nós não temos salário para isso", diz Clodoaldo.

Concepção de trabalho

“Na época da Copa do Mundo, por exemplo, começamos a sofre com o trânsito e as modificações das vias que nos faziam estar sempre atrasados. E aí a gente começou a questionar, ‘nós somos uma cidade que esta mudando sem nos avisar’, então não tem como não questionar sobre isso. Então vamos criar sobre isso. Sempre nós estamos borbulhando dessa forma. E ai a gente tenta transpor do corpo para o público ver. Por isso a gente precisa desse tempo trabalhando junto, das 4 horas por dia, porque às vezes a gente passa essas 4 horas falando sobre política, sobre urbanização”, diz Clodoaldo.
 
Com um processo colaborativo de criação, o grupo afirma conseguir maior imersão de todos na concepção dos projetos, aumentando o sentimento de que o produto final pertence a todos e também facilitando a compreensão do que um espera do outro e assim por diante, apesar de uma divisão de tarefas natural ao processo. “Mas a hierarquia aparece também com a lapidação, mas uma hierarquização consciente e não ditatorial. De acordo com o mercado e com aquilo que a gente quer inserir no mercado”, explica Vinicius.

Natural de Campo Grande, Alexandre relata que iniciou no grupo em meio a essa prática de criação conjunta. “Eu gosto da proposta que o grupo me apresentou. Porque se a gente pensar que uma pessoa num grupo de dez é quem pensa e desenvolve o trabalho, é de certa forma impondo a forma de trabalhar o que esta sendo criado, e fica muito mais enriquecedor os dez colaborarem, surgindo novas ideias, com outros pensamentos”, pontuou Alexandre.

Transpondo essa atuação conjunta para o convívio em sociedade e políticas públicas, o grupo reflete sobre a importância da participação dos cidadãos nas decisões de governo. “Como seria importante para a construção da cidade se todos pudessem opinar e comungar, sobre a construção das vias, das praças, para que as pessoas tomassem parte da cidade, uma apropriação mesmo”, diz Clodoaldo.

Apesar da tentativa de tornar o processo de criação o mais horizontal possível, a verticalização às vezes é imposta por situações externas, como em alguns editais que necessitam de uma nomeação de função específica de cada um.


foto: reprodução/facebook

Burocracia versus Arte

“Um dos grandes obstáculos é a burocracia, que acaba nos barrando. Tem alguns editais que o Comadança só vai poder entrar agora, porque requer tempo de existência”, diz Vinicius. A falta de compreensão do trabalho artístico está em várias esferas da sociedade, desde os próprios editais de incentivo e fomento a cultura até a não aceitação do público da atividade como um trabalho pela sua ausência no cotidiano social.

“E nós não podemos ser MEI [microempreendedor individual], em algumas instancias, porque dança é descodificado dentro do MEI. Não existe [a categoria]. Eu participei de uma consultoria do Sebrae sobre isso e eles entendem totalmente diferente o que é ser um profissional de dança. Está lá teatro, literatura, música, mas dança esbarra ainda com trabalho de educador físico ou animador de festa, então nós temos que pagar como microempreendedor para poder participar de alguns projetos”, desabafa Clodoaldo sobre a situação.

“E você tem que especificar ‘apresentação em dança’. E nós temos trabalhos que não precisam de um local específico, mas não existe essa ferramenta para isso”, finaliza Vinicius.

Para resolver a situação, Clodoaldo destaca a convivência necessária, o fomento e a preparação, até mesmo de quem se dispõe, atualmente, a lidar com a classe artística, como é o caso dos elaboradores de editais, registros de trabalho e afins.

“E é aí que entra a questão da vivência. Se a pessoa não vive a arte e fica só na administração, ele só vai ver administração. Eu vi um parecer do Sebrae falando sobre professor de dança e falam de contratação clássica, mas isso é direcionado para professores de escola. E aí você explica, explica e a linguagem não chega, porque que não chega? Porque não vivencia e se não vivencia e não busca, não tem como”, diz Clodoaldo.

“Arte ainda é colocada dentro da vida econômica de qualquer cidadão como superfulo. E se é superfulo imagina quem faz? Quem faz está aonde? Como se sustentar com arte? Do mínimo que a gente ganha tem que se desdobrar pelos impostos e aí a gente tem a necessidade de volume, de adição direta do que a gente faz. Nós três poderíamos estar na sala de aula agora, mas aí precisaria ser pelo menos dois períodos. E então como fica a nossa criação? Já me disseram ‘você é tão bom, porque você não vai dar aula?’, eu falei ‘então eu vou não é?’, a pessoa praticamente me disse para ir trabalhar, porque não entende”, finaliza o dançarino.

O público e o Comadança

“Assim como há estranheza inicial em qualquer obra, contudo, é interessante a identificação do público, porque a gente não utiliza escrita, não fala, mas o trabalho é formatado de tal forma que quando se assiste ele [público] automaticamente se reconhece, faz a leitura do trabalho dentro daquilo que a gente pensou de outro prisma, mas num mesmo contexto”, explica Vinicius.


foto: Frank Busatto

O dançarino relembra momentos da estada em Alta Floresta, pois o Comadança foi o primeiro grupo de dança contemporânea a se apresentar no município. “O primeiro masculino também e único ativamente trabalhando com dança contemporânea. E as pessoas se emocionam e ficamos impressionados com isso, porque é uma identificação muito forte. Eu posso ser diferente em alguns aspectos de você, mas nós somos do mesmo lugar, por mais que algumas vezes eu fale algo que você não compreende, mas você me compreende porque no meu corpo, nas minhas maneiras você se vê”, relata Vinicius.

“E confirma que estamos no caminho, não sei se certo ainda, mas as cidades que a gente passou em outros estados o publico ficou com muitas questões, fizeram conexões. No Amapá apresentamos em um teatro de 1500 lugares. E o povo foi extremamente receptivo. Uma faculdade inteira de Educação Física querendo saber da nossa pesquisa”, comenta Clodoaldo.
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