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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Ministro Luiz Fux e o juiz sem rosto

Em artigo publicado no O Globo (22.06.12, p. 7), o Ministro Fux, em defesa do complexo processo de "brasilianização" da sociedade e da Justiça criminal, defendeu uma campanha pela vida digna da sociedade, que deveria ser levado a cabo "por aqueles que almejam erradicar a marginalização para o bem de todos, ainda que para alcançarem esse desígnio sejam 'homens sem rosto'". De acordo com sua opinião, deve-se colocar o juiz sem rosto "diante da criminalidade, tal qual um agente desconhecido e infiltrado capaz de vencer esse flagelo por que passa a sociedade brasileira". O processo de brasilianização das sociedades é composto de dois polos opostos: o trágico e o carnavalizado (Empoli: 2007, p. 19 e ss.). Em algumas ideias encontramos as duas coisas: contra o trágico luta-se por carnavalizar o sistema judicial do Estado de direito.

O ministro menciona em favor da tese a Convenção de Palermo, o II Pacto Republicano, a Resolução n. 3 do CNJ, a lei processual espanhola, a experiência exitosa (sic) da França e da Colômbia etc. Partidário, no ponto, da percepção fragmentada, não percebeu o retrocesso do seu posicionamento (que reenergiza o velho dilema da barbérie ou civilização).

O Ministro confundiu o juízo colegiado (prevista na lei brasileira) com o juiz sem rosto (adotado em alguns momentos por alguns países, que já retrocederam), fazendo uma ardorosa defesa deste último (mas dando a impressão de que defende, na verdade, o primeiro). Conhecendo bem a história de sucesso do Ministro Fux (como conhecemos), desde a perspectiva da criminologia pró-"escandinavização" (civilização) das sociedades, que se contrapõe a todos aqueles que querem, em pleno século XXI, depois do holocausto, do nazismo e dos fascismos, fazer Justiça criminal sem respeito às garantias constitucionais e internacionais, sem observância dos direitos humanos (dos acusados e das vítimas) e sem a perspectiva da Justiça social civilizante (tal como sustenta van Swaaningen: 2011), ficamos numa torcida incrível para que existam, no seu artigo, apenas ideias confusas.

Ficaríamos muito entristecidos se fosse o contrário, ou seja, se ele efetivamente defendera a validade de uma instituição falida que é ultrarreacionária e bárbara, uma aberração dos tempos da Inquisição (das acusações secretas), um retrocesso sem precedentes, uma ideia fora do seu tempo, uma violação à cultura Ocidental, um desvio na linha civilizatória evolutiva da humanidade, um descompasso com a modernidade, para além de constituir um deslize deplorável da pós-modernidade. O mundo racional caminha para a "escandinavização" da vida, das sociedades, da Justiça, da polícia etc. Seu descompasso com a "brasilianização" do mundo e da vida é patente.

Que tenha havido apenas um equívoco no artigo do Ministro Fux, até porque, no julgamento da ADIn 4.414 (da qual ele fora relator), nada se decidiu sobre o juiz sem rosto, sim, sobre o juízo colegiado. A ideia do juiz sem rosto é retrógada, inconstitucional e ultrapassada. O II Pacto Republicano (invocado no seu artigo) não fala em juiz sem rosto, sim, na "criação de colegiado para julgamento em primeiro grau nos casos de crimes de organizações criminosas, visando a trazer garantias adicionais aos magistrados, em razão da periculosidade das organizações e de seus membros". Juízo colegiado, como se vê, não se confunde com juiz sem rosto. A mesma coisa deve ser dita em relação à Resolução 3 do CNJ, que estimula a criação do juízo colegiado (não do juiz sem rosto).

Em seu arrazoado o Ministro Fux também invocou o art. 282 do Código de Processo Penal espanhol, mas ocorre que ele prevê a figura do policial investigador com identidade suposta, não o juiz sem rosto, que representaria um retrocesso sem precedentes. De uma crítica e de um retrocesso medieval a nova lei de proteção dos juízes e promotores (12.694) se livrou: ela não criou o chamado juiz sem rosto, o que representaria um retrocesso inaceitável. Impõe-se rapidamente desfazer o equívoco. A lei nova não instituiu no Brasil o chamado "juiz sem rosto", que se caracteriza por não revelar sua identidade civil. Juiz sem rosto é o juiz cujo nome não é divulgado, cujo rosto não é conhecido, cuja formação técnica é ignorada. Do juiz sem rosto nada se sabe, salvo que dizem que é juiz. Nada disso foi instituído pela nova lei. Os juízes pela nova lei são conhecidos. Seus nomes são divulgados. Só não se divulga eventual divergência entre eles.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos eliminou o juiz sem rosto peruano em 1999 e em 2000 (respectivamente nos casos Cantoral Benavides e Castillo Petruzzi), porque ofensivo ao direito de defesa, que tem direito a juiz imparcial. A Corte Suprema Colombiana aboliu essa excrescência no ano 2000. Qualquer lei no Brasil que instituísse o juiz sem rosto seria inconstitucional e inconvencional, além de retrógrada e ultrapassada. Em tempos de criminologia midiática (Zaffaroni: 2012), que possui incomensurável força opressiva e desinformativa, a confusão entre juízo colegiado e juiz sem rosto chega a emaranhar o pensamento até mesmo de ministros ilustrados, como é o caso de Luiz Fux (que não tem nada a ver com Luís XIV, XV ou LVI, este último, desapeado do poder em razão de uma revolução).


Luiz Flávio Gomes, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br e no Twitter: @professorLFG

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