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Terça-feira, 23 de abril de 2024

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Crise não justifica colocar negociação coletiva acima da CLT

Autor: Renan Kalil e João Carlos Teixeira

20 Jun 2016 - 16:28

Nas últimas semanas, as notícias veiculadas pelos grandes meios de comunicação têm tratado das propostas relacionadas ao mundo do trabalho que o governo interino, sob o pretexto de estimular o crescimento econômico, teria a intenção de aprovar. Uma das principais é aquela que trata sobre o negociado se sobrepondo ao legislado.

Atualmente, a legislação prevê qual é o mínimo que o trabalhador deve receber pelos serviços feitos, ou seja, existem parâmetros que não podem ser rebaixados pelo empregador. Até porque as leis trabalhistas não foram criadas para atender a formas de trabalho que são historicamente datadas ou mesmo para responder a particularidades vivenciadas por determinados ramos da economia.

As regras no direito do trabalho, por uma razão inerente às relações trabalhistas, possuem uma lógica própria: a desigualdade econômica entre empregador e empregado. Com o intuito de se atenuar as diferenças nas relações de trabalho, afasta-se a ideia de igualdade das partes e fixam-se dispositivos em favor do trabalhador.

O ordenamento jurídico trabalhista até prevê situações específicas em que é possível aplicar parâmetros abaixo do que estabelece a lei, contudo se tratam de exceções à regra geral.

A proposta do negociado sobre o legislado tem como objetivo permitir que regras trabalhistas que forem estabelecidas em negociação coletiva sejam aplicadas aos contratos de trabalho, inclusive se forem prejudiciais em comparação com as previsões legais. O que se pretende com isso é conferir às entidades sindicais, por meio de acordos com empresas ou com sindicatos patronais, o poder de diminuir os direitos dos trabalhadores. Trata-se de uma medida que, se aprovada, mudará de forma profunda o direito do trabalho no Brasil.

A introdução do negociado sobre o legislado no ordenamento jurídico transformaria o que é exceção em regra, subvertendo todos os fundamentos que justificam a existência do direito do trabalho. É salutar que sejam tomadas medidas com o objetivo de se retomar o crescimento econômico, entretanto não há justificativa política, jurídica, econômica ou moral para fazê-las às custas dos direitos dos trabalhadores.

Está tramitando no Congresso Nacional o PL 4.962/2016 que trata, especificamente, do negociado sobre o legislado. Em tal proposta, a redação do art. 618 da CLT seria alterada para: "as condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de medicina e segurança do trabalho".

Esse projeto foi apensado ao PL 427/2015. Os dois estão na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara, aguardando parecer do relator. Após deliberação, serão encaminhados para a Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania. Se aprovados nas duas comissões, os projetos não serão nem apreciados pelo plenário da Câmara, indo diretamente ao Senado.

A rapidez com que o projeto está tramitando não condiz com a dimensão do impacto que terá nas relações de trabalho. Há a necessidade da realização de um amplo debate com a sociedade para se discutir que dimensão terá seus efeitos na vida dos trabalhadores. Em face dessa proposta, há grande resistência social por parte de centrais sindicais, entidades da sociedade civil, intelectuais, juízes do Trabalho e procuradores do Trabalho que, nos termos acima descritos, já manifestaram repúdio à introdução do negociado sobre o legislado.

É importante lembrar que essa não é a primeira tentativa de se implementar, no direito do trabalho brasileiro, o negociado sobre o legislado. No final do segundo mandato do FHC, o governo enviou ao Congresso Nacional o PL 5.483-C/2001, cujo conteúdo é semelhante ao do PL 4.962/2016. Houve protestos dos trabalhadores, e a proposta não foi adiante.

No ano passado, no bojo dos debates para aprovação da Medida Provisória nº 680, que tratava do Programa de Proteção ao Emprego, tentou-se introduzir no texto, para a conversão em lei, um dispositivo que estabelecia o negociado sobre o legislado. A reação contrária foi grande e a lei aprovada não contemplou essa proposta. Portanto, constata-se que, além da resistência social que existe, o negociado sobre o legislado já foi rejeitado no Parlamento em duas ocasiões.

O Brasil passa por um momento em que há elevada demanda popular por maior transparência nos atos praticados pelos políticos e pelo aumento da intervenção do povo nas definições dos rumos do país. A maneira pela qual está sendo encaminhada a proposta do negociado sobre o legislado - de forma apressada e sem a participação dos atores do mundo do trabalho- vai na contramão dos anseios populares e reforça a percepção de que o Brasil vive um ciclo no qual os direitos trabalhistas estão sob ameaça.

Renan Kalil e João Carlos Teixeira são Procuradores do Trabalho e coordenadores nacionais de Promoção da Liberdade Sindical (Conalis) do MPT
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