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O atual momento político e a constituição

Julio Cezar Rodrigues

Desde o processo de  impeachment da Presidente Dilma Rousseff o País como um todo foi apresentado a algumas normas constitucionais com intenso debate. Se foi “golpe” como quer fazer valer o discurso oficial do Partido dos Trabalhadores e demais partidos alinhados ideologicamente a ele ou se foi um processo que seguiu regras republicanas e democráticas prevista na Carta Magna (hipótese a qual me filiou pela obviedade) deixemos para os historiadores e juristas.  É notório o caráter jurídico/político deste processo. Tanto é político que a solução final contrariou frontalmente o disposto no parágrafo único do art. 52, uma vez que a Presidente foi punida apenas com perda do cargo, sendo que o referido dispositivo é taxativo: “(...) à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízos das demais sanções judiciais cabíveis”. Percebam que a “inabilitação” está gramaticalmete agregada à “perda do cargo”, portanto, inseparáveis quando da sua aplicação ao caso concreto. Desnecessário qualquer hermenêutica avançada para decifrar tal redação.

Devido aos acontecimentos da semana passada (15 a 19/05), com a delação dos irmãos Batista, proprietários do Grupo JBS, o Presidente da República enfrenta profunda crise política. É significativa a ocorrência de uma dessas possibilidades: renúncia, novo processo de impeachment, cassação da chapa Dilma/Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento marcado para o dia 06/06/17. Em qualquer desses desfechos, um novo presidente deverá ser escolhido. Como se dará esse processo? Parte da resposta, mais uma vez, está no “livrinho” (como diria Ulisses Guimarães). Nos termos do § 1º do Art. 81, a Constituição estabelece que “ocorrendo a vacância do Presidente e Vice-Presidente nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita em trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”.

Com efeito, trata-se de eleição indireta. A escolha dar-se-á pelos votos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Quem poderá concorrer? Neste ponto é que surgem as dúvidas. Não ousarei responder, apenas, quero fazer uma conexão entre a decisão ocorrida no processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff e o fato que ora se avizinha. Se, naquela situação, com a Carta Magna prevendo de forma cristalina, evidente textual, literal como se aplica a sanção a um Presidente condenado em processo de impedimento, conseguiram deturpá-la, o leitor já deve estar fazendo um juízo preliminar de como nossos “brilhantes” parlamentares enfrentarão esta questão. É simplesmente imprevisível antecipar que regras serão adotadas para disciplinar esse processo. Boa coisa não virá!

Setores à esquerda do espectro político, capitaneados pelo PT e sua militância (movidos por alguns instinto de vingança?) passaram a defender eleições diretas para suprir a eventual vacância do cargo de Presidente. É legítimo que o façam. Assim permite a democracia (impossível seria em uma ditadura do proletariado ou de extrema direita). Ocorre que, para tal, obrigatoriamente deverá haver uma mudança no texto constitucional através da aprovação de uma PEC (proposta de emenda à constituição). Sem adentrar ao mérito, a pergunta que se faz é: não seria temeroso (não é trocadilho) e casuístico alterar regras constitucionais sob a pressão de um determinado momento político? Imagine leitor, se a cada novo problema que o país enfrentar, e certamente teremos muitos deles, partimos para mudança de regra pontuais? Somos um  país internacionalmente conhecido pela insegurança jurídica, até onde iremos? Não estou a defender que a constituição não deva ser emendada. Defendo que, neste momento, a regra vigente para realocar novo Presidente dá conta do recado. Contrário senso, uma eleição direta (além de todo o desgaste para aprovar essa PEC) não é garantia nenhuma de que faríamos a melhor escolha (lembrem-se da última, ficamos entre Dilma e Aécio).  E ainda perguntaria à esquerda: caso o Deputado Jair Bolsonaro estivesse hoje à frente de Luis Inácio Lula da Silva nas pesquisas de intenção de voto, ainda defenderiam eleições diretas?

Fala-se muito em legitimidade. Juridicamente, é legítimo aquilo que se encontra em conformidade com a lei. Neste aspecto, a eleição indireta é legítima. Esta é a única certeza que temos. Em seu aspecto político, a questão da legitimidade na democracia pode ser entendida como a existência de um “consenso” sobre a forma de aplicação do poder. Sob este viés, adentramos à subjetividade e a juízos de valores sobre consentimento. Claro que é importante também. Apenas gostaria de frisar que, neste momento de incertezas, o melhor que podemos fazer para atravessá-lo (restam apenas 17 meses até a próxima eleição) é utilizar a “ponte” já construída pela Constituição. Este debate pode ser retomado em outra altura de nossa caminhada política. Apenas reflita, o processo anterior de impedimento levou a pecha pela esquerda de “golpe”. A mesma retórica será utilizada pela direita caso se aprove uma PEC para eleições diretas. Estaremos andando em círculos. E o País?

A Constituição é a lei fundamental e suprema de uma nação. É a garantia do cidadão contra o poder estatal e o arbítrio. Em verdade trata-se de uma das inúmeras ordens imaginárias criadas desde a revolução cognitiva a cerca de 70 mil anos atrás. Ela existe porque eu, você e todos nós possuímos esta crença subjetiva. Assim, forma-se uma rede intersubjetiva que cria a ilusão de uma existência objetiva. Importa compreender a importância do consentimento da maioria para propiciar a legitimidade desta carta de direitos, contrário senso, um contínuo enfraquecimento nesta crença desencadearia forças instabilizadoras com consequências imprevisíveis. Vide, por exemplo, a onda de protestos e revoltas ocorridas em países árabes em 2011, conhecida com primavera árabe e a situação atual de tais países.

Em momentos instáveis e de incertezas resta-nos a insistência para que as soluções aconteçam através das instituições criadas com o nosso consentimento. A revolução que o brasileiro precisa desencadear é menos de ordem institucional e mais no campo da ética. Não dá mais para continuar votando em candidatos fichados na polícia, réus na justica ou suspeitos de práticas criminosas ou não republicanas. Urge que não deixemos mais a política apenas para os “políticos”.
 
 
Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado
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