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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Decisão pioneira

Juiz que autorizou mudança de nome e gênero de criança afirma que ela se sentia "numa prisão psicológica"

Foto: Divulgação

O juiz Anderson Candiotto, responsável pela decisão

O juiz Anderson Candiotto, responsável pela decisão

A justiça autorizou a mudança de nome e gênero de uma criança em Sorriso (a 420 km de Cuiabá), sob argumento de que ela nasceu com uma anatomia física contrária à identidade sexual psíquica. De uma forma mais simplista, é como se fosse uma menina no corpo de um menino. A decisão foi do juiz Anderson Candiotto, da Terceira Vara da Comarca do município, que, em entrevista ao Olhar Jurídico, explicou que a criança em questão só “só age com naturalidade quando se comporta como se vê” pois, ainda que biologicamente seu corpo possua aspectos do sexo masculino, sua “percepção de ser humano é feminina”. E que por isso ela se sentia "numa prisão psicológica".

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O magistrado relatou que muitas decisões semelhantes já foram proferidas em todo o Brasil. Entretanto, desconhece outro caso envolvendo criança, mas não confirma se é o primeiro pois carece de dados oficiais. Ele explicou que “o bem estar deve ser garantido no presente”, mas que não foi uma decisão tomada sem precauções e fundamentações.

Pelo contrário, a criança, que agora possui nove anos, foi acompanhada desde os sete pelo Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense (AMTIGOS) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP/SP, o único no Brasil que exerce estudos nessa área. Durante o monitoramento, foram usadas diversas técnicas psiquiátricas e psicológicas que diagnosticaram o transtorno de identidade sexual na infância.

Além disso, também usaram a modalidade chamada “Depoimento sem Dano”, em que a criança – entre brincadeiras e conversas - interage com uma psicóloga enquanto é acompanhada em tempo real, via monitor, pelo magistrado. Na ocasião, o juiz concluiu que ela só “age naturalmente, de maneira autêntica, quando se comporta como menina”.

No entanto, quando é submetida ao contrário e tem que se portar socialmente como um menino, “o relato é triste, com traços de vergonha. Não existe bem estar ou qualquer tipo de satisfação”, descreve o juiz.

Candiotto ainda relata que, além do aspecto psicológico, a própria aparência física é marcada por traços típicos do que convencionalmente identificamos como feminino. “A compreensão física, a voz, o comportamento meigo típico de menina. Visualmente, dificilmente alguém diria que não é uma menina”, pontua.

A recepção social da decisão

O magistrado acredita que este tipo de decisão ainda cause certa surpresa porque não é um assunto que faça parte do cotidiano da população. De acordo com ele, até mesmo no meio jurídico o tema ainda enfrenta certo tabu, tanto é que, apesar de frequentes relatos, “não se encontra inúmeras ações a respeito”, pois é algo “recente pra sociedade incorporar ao cotidiano”, afirma.

No entanto, apesar das dificuldades, o juiz vê uma evolução e acredita que “embora não faça parte do cotidiano, já não existe uma discriminação indiscriminada. A sociedade já assimila e aceita com mais naturalidade. E a dignidade da pessoa humana reside em não discriminar ninguém segundo sua crença, raça, aspectos físicos ou orientação sexual”, argumenta.

Ele, inclusive, infere que há “50 anos talvez fosse possível a decisão, mas a reação social seria diferente. Talvez até a decisão fosse diferente, pois não era pautada pela dignidade da pessoa humana, que só foi instituída com a Constituição Federal de 1988”, conclui.
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