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Presos provisórios: pobre e negro com ensino médio incompleto

Da Redação - Arthur Santos da Silva

A pedra é barata e mesmo assim tem gente que não consegue trabalho nem para isso. Não consegue porque a pedra mesmo não deixa. Depois que fuma, fuma e fuma, o sujeito quase nunca volta. Se torna o crack. O personagem principal de um mundo paralelo. Mas para ser super homem, é preciso pagar. A sorte é que também dá para fazer rolo. No dia 16 de junho W.H.S. queria voar. Queria e foi ainda no chão que ele viu um celular que valia o preço. Sansung Galaxy Prime. Esse vale pedra que dá para calçar uma boca. Trato feito. Faca no rumo da barriga é igual celular com um novo dono: a lei de W.H.S. O problema é que polícia não respeita lei de usuário. E se for pobre e preto respeita menos ainda. Desde o dia 16 de junho de 2017 W.H.S. está preso no Centro de Ressocialização de Cuiabá. Lá dentro celular é o que mais sobra.

Leia a série:
Prisões provisórias em Mato Grosso: a máquina de matar direitos


Pobre e negro com ensino médio incompleto. Não é somente W.H.S.. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o perfil socioeconômico dos detentos brasileiros mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e apenas 75,08% têm até o ensino fundamental completo.

Com conhecimento empírico sobre o cenário, o advogado criminalista Sérgio Batistela é capaz de reconhecer uma tipologia comum dos que sofrem com a privação de liberdade sem um julgamento definitivo.

“Nós temos que ver o seguinte, qual a idade desses presos? Eu não estou falando só do sistema prisional. Qual a idade dos presos que estão lá? A maior faixa etária é entre os 18 e os 25, 26 anos. Isso a maioria que está lá. Por que isso acontece? É a escolaridade, que não existe e a falta já vem das gerações anteriores. Vai criando uma instabilidade, não frequentam a escola, vão ficando vulneráveis, sem educação, nas ruas e acabam indo para a parte do crime”, afirma Batistela.

Além da idade e da falta de educação básica, Batistela parece ter o mesmo instrumento de medida desenvolvido pelo Infopen quando o assunto é o perfil econômico. “Se formos traçar o perfil dos presos, você vai ver que não se difere muito. Você não vai ver lá dentro, no Pascoal Ramos, no Carumbé, ou no Capão Grande, você não vai ver uma pessoa com um patrimônio material grande. Você vai achar sempre o mesmo perfil. É uma pessoa da periferia, pobre”.

Para o advogado, a receita para manter os direitos básicos não deve ser moldada pela atual rigidez descabida. “Eu só vejo uma forma disso melhorar. E não é a mudança do código penal. Não é aumentar a punição. Não é encher mais os presídios de pessoas. Eles já estão estourando. É a educação, é a escola”, esclarece.

 
Pensamento semelhante habita a consciência do juiz Geraldo Fidelis, da Vara de Execução Penal de Cuiabá. Mesmo trabalhando diretamente com detentos condenados, Fidelis convive com o sistema penitenciário e os seus presos provisórios. Para remediar o quadro de superlotação e terror, o magistrado trabalha por uma ampliação em duas frentes.

“São situações imediatas e ‘mediatas’, indiretas. É necessário o investimento na área social. É necessário o investimento em educação. Mais educação hoje, menos penitenciárias no futuro. Mas também é necessário fazer uma atenção ao sistema penitenciário. Entrar com trabalhos internamente. Fazer delas oficinas. Fazer delas escolas. Dentro das penitenciárias buscar capacitar, tratar com humanidade, uma humanização do sistema penitenciário. São situações que devem partir de fora do muro e situações internas”.

Sobre a falta de estrutura física, Fidelis aponta com dureza as falhas. “Não houve construção de vagas. Não houve construção de penitenciária em Mato Grosso. E isso tudo por anos. Não é problema de um governo. É de vários governos. Então Mato Grosso parou no tempo. Parou no tempo, mas Mato Grosso cresceu. Região oeste, que faz fronteira com a Bolívia, região Leste, lá no Araguaia. Todo o Nortão. Mato Grosso mudou, mas não progrediu os investimentos no sistema penitenciário. Não houve investimento e é importante que se abra essa cortina para mostrar onde é necessário fazer esse investimento por partedo Estado. Colocar o dedo na ferida, nem que doa”.

Para tentar reverter o quadro, O Estado está construindo o Centro de Detenção Provisória de Jovens e Adultos de Várzea Grande, localizado na rodovia MT-351, próximo ao distrito de Pirizal. A unidade será a maior estrutura prisional de Mato Grosso. O projeto prevê a construção de 1.008 vagas, podendo ser ampliado para 1,5 mil vagas.

“Está sendo construído uma unidade penitenciária em Várzea Grande para 1008 lugares. Todos os presos provisórios que estão nas unidades de Várzea Grande e Cuiabá devem ser encaminhados para lá. Que fique lá só provisórios”, afirma Fidelis.

O magistrado tem ciência da recomendação de que, na unidade prisional, o preso provisório deverá sempre ser colocado em celas diferentes das dos presos já condenados definitivamente.“Não pode misturar. É fundamental. O que faz crescer o crime organizado e o que faz crescer essas facções, são essas pessoas que não deveriam ser presas. Vão para dentro da penitenciária, são batizadas, saem depois de um mês, já batizados, devendo favores à facção. Estas facções criminosas”.

Em Mato Grosso, a separação que ocorre é clara: são 5593 presos provisórios vivendo em cima de 5031 presos condenados.

Audiência de custódia

Para sanar o problema da superlotação e o consequente extermínio de direitos, o Poder Judiciário adotou como medida obrigatória a realização de audiências de custódia. Com o instrumento, o cidadão preso em flagrante é levado à presença de um juiz no prazo de 24 horas.

Acompanhado de seu advogado ou de um defensor público, o autuado é ouvido, previamente, por um juiz, que decide sobre o relaxamento da prisão ou sobre a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.

O procedimento tem como objetivo assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão, por meio de apreciação mais adequada e apropriada da prisão antecipada pelas agências de segurança pública do estado. Ela garante o direito ao contraditório pleno e efetivo antes de ocorrer a deliberação pela conversão da prisão em flagrante em prisão provisória.

Em Mato Grosso, a audiência de custódia foi implantada no dia 24 de julho de 2015, e os números continuam alarmantes. A escalada, porém, não é culpa de uma possível ineficiência das audiências de custódia. Ao menos não em seu histórico recente.

Conforme dados publicados pelo Tribunal de Justiça, 2.370 pessoas deixaram de ser presas entre junho de 2015 e janeiro de 2017 graças ao instrumento preliminar. Considerando que cada detento custa, em média, R$ 3 mil ao mês, a economia mensal chegou a R$ 7,1 milhões. Ao longo desse período foram realizadas 4.393 audiências.

Ocorre que atualmente as audiências de custódia são executadas somente em Cuiabá. O procedimento ainda não foi estendido por completo ao interior do Estado. As Comarcas de Várzea Grande e Rondonópolis, por exemplo, ainda engatinham sobre o assunto.

Sem o devido amparo das audiências de custódia, as prisões provisórias seguem se reproduzindo como verdadeiras máquinas de matar direitos naturais.

Depósito humano

A Oitava Vara Criminal de Cuiabá, liderada pela juíza Maria Rosi de Meira Borba, possui 54 presos provisórios, conforme consulta realizada no dia 22 de agosto de 2017. Os nomes não foram libertados durante triagem da audiência de custódia.

Aproximadamente 70% desse montante - 38 pessoas – está detido pelo crime descrito no artigo 157 do código penal brasileiro: “subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”.

Segundo o sociólogo Naldson Ramos, professor associado da UFMT e membro da Sociedade Brasileira de Sociologia, o alto número de presos provisórios esclarece questões primárias sobre o sistema prisional. “Revela o quanto a nossa justiça é lenta incapaz de responder a demanda processada pela justiça criminal. Isto resulta em impunidade e aumenta a sensação de insegurança, sem falar que desacredita ainda mais a justiça brasileira”, salienta Ramos.

Ainda sobre os números e as histórias sem nomes, Naldson considera que há uma falha nos sistemas judiciário e penitenciário que acaba por “selecionar” as pessoas mais vulneráveis.

“Os números denunciam um fato social que é a principal característica da sociedade brasileira: a desigualdade social. Ela afeta principalmente os pobres, negros, mestiços, a baixa escolaridade, atinge os mais jovens. pouca qualificação profissional. Não é a justiça que produz essa realidade. A justiça apenas reafirma a desigualdade. Ela se volta para esta população em situação de vulnerabilidade porque o nosso sistema criminal foi pensado para punir judicialmente aqueles que foram punidos socialmente” afirma o sociólogo.

Segundo dados do Ministério da Justiça, pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose. A taxa de prevalência de HIV/Aids entre a população prisional era de 1,3% em 2014, enquanto entre a população em geral era de 0,4%. Em 2014, a taxa de mortalidade criminal (óbitos resultantes de crimes) era de 95,23 por 100 mil habitantes, enquanto entre a população em geral, a taxa era de 29,1 mortes por 100 mil habitantes.

Para diminuir o quantitativo de presos provisórios, Naldson Ramos enxergar apenas um caminho. “A solução é aumentar celeridade dos processos, ampliar e aplicar a Audiência provisória e as penas alternativas para pequenos crimes, prevenir a violência e o crime por meio de educação, esporte, cultura, qualificação profissional e distribuição de renda para aumentar os laços de solidariedade e justiça social”.
 
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