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Sábado, 20 de abril de 2024

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Ator usa palhaço para lidar com limitações da esclerose múltipla

Um ator pode interpretar vários personagens, mas só um palhaço. Isso porque o palhaço é uma caricatura do próprio intérprete. Para construí-lo, é preciso colocar uma lupa sobre as próprias falhas, inaptidões e pudores. Exacerbá-los, aceitá-los e expô-los ao público.


"Ser palhaço é ter talento para seus fracassos." É assim que Nando Bolognesi, 40, define a sua profissão. Da faculdade de economia, ele passou a estudar artes dramáticas, chegou ao palco como Comendador Nelson e acabou na área da saúde --foi integrante dos Doutores da Alegria por quatro anos e hoje desenvolve um projeto em hospitais psiquiátricos. Mas talvez o principal paciente do Comendador tenha sido ele próprio --o ator tem esclerose múltipla.

O problema surgiu em 1988, quando Nando, aos 20 anos, viajava pela Europa. No tempo livre, dedicava-se a uma paixão: o futebol. Destacava-se no campo, mas, um dia, viu que, às vezes, a perna não obedecia.

Pouco depois, percebeu que a sua letra estava estranha. Até que, certa manhã, não conseguiu apertar a válvula do desodorante. Assustado, voltou ao Brasil, onde foi diagnosticado.

A esclerose múltipla ocorre quando o sistema imunológico passa a atacar as células nervosas, levando à perda parcial dos movimentos e dos sentidos.

No caso de Nando, a doença era do tipo surto-remissão --após o tratamento de uma fase aguda, o organismo recuperava as habilidades atingidas. Mas os surtos deixavam sequelas, principalmente nas pernas.

Foi assim que o rapaz atlético deixou de ser o capitão do time de futebol para se tornar o último a ser escolhido. Os amigos, solidários, ainda o chamavam para as partidas. Mas ele acabava ficando de escanteio. "Eu não concebia a possibilidade de não jogar. Corria, remava, adorava esportes. É algo muito difícil de aceitar", lembra.

Vieram o luto, a terapia, a meditação transcendental. E, aos poucos, veio também o Comendador Nelson. "Comecei a ter que vivenciar o 'perdedor'. Mas era uma coisa amarga. Não era uma opção, como no palhaço. Era a minha vida."

E Nando reprimiu a doença. Tudo bem expor ao público sua leve tendência à rabugice e à nostalgia. Mas as limitações físicas ficavam camufladas. Assim, quando participava dos Doutores da Alegria, grupo de palhaços que visita crianças internadas, caminhava por horas pelos corredores dos hospitais, apesar da fraqueza nas pernas. Quando passou a integrar o espetáculo Jogando no Quintal, uma espécie de duelo entre palhaços, esforçava-se para encarar as duas horas de aquecimento mais duas de show.

Ao perceber que o cansaço era demais, consultou a equipe: será que o Comendador Nelson poderia usar uma bengala no palco? A resposta foi sim. "Assumi que o meu ritmo era outro. Eu lutava contra isso, tentava pular e correr como os outros. Até eu sacar que, quanto mais eu assumisse a minha condição, mais verdadeiro seria. Todo mundo está sempre procurando onde está a singularidade do seu palhaço. Pensei: está na minha cara. Parece óbvio, mas, para mim, não era."

Há cerca de três anos, Nando incorporou a bengala também no seu dia-a-dia.

Novo tratamento

A aceitação não significa conformismo, ele frisa. "Quero continuar buscando superar os limites que a esclerose coloca", afirma. Há cerca de cinco anos, esses limites aumentaram. A doença evoluiu de surto-remissão para progressiva secundária, ou seja, mesmo fora do período de surto, a doença progride lentamente.

Para combater a doença, Nando se submeterá, em janeiro, a um novo tratamento que une quimioterapia com transplante de células-tronco. No procedimento, o paciente recebe quimioterápicos, que inibem a produção das células imunológicas na medula óssea, e um soro, que "desliga" o mecanismo de combate ao sistema nervoso.

Depois, células-tronco retiradas previamente de seu próprio corpo são implantadas e reativam a medula.

O método consegue estagnar a doença em grande parte dos casos e, em alguns, pode levar à recuperação de movimentos. Um estudo feito pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e pelo hospital Albert Einstein mostrou que o tratamento freou o avanço do mal em 28 de 41 pacientes.

Quando Nando sair do hospital, o Comendador Nelson poderá voltar a seus outros pacientes. Com alguns amigos, ele montou o projeto Fantásticos Frenéticos, que faz visitas semanais ao hospital-dia do Instituto A Casa, em São Paulo, que propõe ser uma alternativa ao tratamento manicomial.

A ideia da loucura atraía Nando desde a adolescência, quando ele acompanhava de seu quarto o movimento de um hospital psiquiátrico --anos depois, ele entraria nesse hospital para interpretar um interno, no filme "Bicho de Sete Cabeças" (2001), de Laís Bodanzky.

No Instituto A Casa, o trabalho é outro --a base é a interação do palhaço com os pacientes. Uma troca, na qual o Comendador também recebe cuidados. "Eu estava subindo uma escada e um paciente me segurou: "Não vai cair, hein, Comendador?" Veja só: ele era um homem que a sociedade considera incompetente. De repente, chega alguém ainda mais frágil, e ele tem a oportunidade de me amparar. Desconfio que esse é o poder do palhaço. Em uma sociedade tão competitiva, que cobra o tempo todo soluções, respostas, efetividade, ele é o oposto disso. É um alívio."
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