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Quinta-feira, 18 de abril de 2024

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Moradores revivem passado com baixa do Lago de Furnas em MG

Moradores revivem passado com baixa do Lago de Furnas em MG
A estiagem prolongada que atinge o Sul de Minas desde 2012 trouxe prejuízos, poeira, ar seco, longas áreas de vegetação onde havia água. Mas do fundo do lago, trouxe também parte da história de uma região que viu sua paisagem mudar em 1963. Para trazer o progresso, a construção do reservatório de Furnas 'enterrou' terras, fazendas, casas e até uma cidade. Enterrou histórias. Com a estiagem, essas histórias vêm à tona com a antiga torre da igreja de Guapé (MG) que surgiu do fundo da água. Pontes e antigas terras ‘voltam à vida’ (e até ao uso) em Três Pontas. Andar pelo cenário da seca, que ‘assombra’ os moradores da região há cerca de dois anos, é visitar o passado do Sul de Minas.

Ao adentrarmos na pequena cidade de Guapé, no Sul de Minas, alguma coisa soa estranha no ar. As largas ruas são incompatíveis com as estreitas vias de cidades sul mineiras com cerca de 100 anos, como Guapé. A Igreja Matriz, no Centro da cidade, foi elevada de um projeto moderno, e em volta da praça principal não há nem sombra de casarões antigos típicos da configuração da maioria das pequenas e antigas cidades da região. Estamos na nova Guapé, aquela construída após o reservatório de Furnas tomar dois terços da antiga. As ruas, lotes, a nova praça e igreja foram planejadas pela equipe de Furnas que evacuou a cidade que seria alagada.
Em uma das 10 casas projetadas para os funcionários de Furnas à época da inundação (hoje reformada e diferente da original), dona Maria Esmeralda Ávila Peres folheia as reportagens antigas que retratavam Guapé dias antes de sua inundação. Com 75 anos, nascida e criada na cidade, a professora aposentada guarda documentos antigos da Guapé que passou a vida, tanto a antiga quanto a nova.

No arquivo de dona Esmeralda, é possível ler a edição de 1963 da extinta revista Manchete, que anunciava: “1.200.000 KW contra o subdesenvolvimento – Furnas: a enchente do progresso”. No decorrer da matéria, uma foto mostra uma mãe e seus dois filhos observando a água tomar conta das paredes de uma residência. A citação acima da foto explica: “A tristeza de alguns é apenas momentânea, pois sua região receberá os benefícios do progresso”.

“Vieram muitos jornalistas aqui pra cidade ver a situação, porque era uma situação inusitada ‘né’, uma cidade sumir embaixo d’água”, conta dona Esmeralda ao folhear outra matéria, da revista O Cruzeiro, mostrando outra parte da história um pouco mais triste: o desespero dos moradores que perderam quase tudo em alguns dias. A reportagem de José Franco (que chegou a ganhar o Prêmio Esso de Reportagem em 1963) cita o choro, a resistência dos moradores, a incredulidade e até o suicídio de um.

Ela cita ainda a ironia da situação: a bandeira do município carrega a inscrição em latim “Fluctuat ne mergitur” (Flutua, não se submerge). Pois em 1963, Guapé submergiu nas águas de Furnas. “As comportas de Furnas foram fechadas às 0h do dia 9 de janeiro. As águas levaram cerca de oito dias para chegar em Guapé”, continua dona Esmeralda. Ela conta que os moradores foram avisados que a cidade seria alagada, mas que o dia não foi informado.

Muita gente desacreditou dessa possibilidade. No dia que as comportas foram fechadas para formar o reservatório, o monsenhor da cidade que sempre anunciava as notícias da região nos alto-falantes da igreja não avisou a população do que iria acontecer. Estava em viagem, presente de Furnas pra ele, segundo dona Esmeralda.

Helicópteros e caminhões do Exército jogavam planfletos e mandavam os moradores saírem correndo porque a água ia tomar a cidade em dias. A diversão das crianças nos dias da inundação era colocar varetas na terra, e à medida que a água se aproximava, eles mediam quanto ela havia subido de um dia para o outro. A diversão acabou quando as águas começaram a tomar a cidade.

Segundo dona Esmeralda, algumas casas foram construídas na nova Guapé para abrigar a população, mas na época da evacuação, os imóveis não estavam prontos. “Quando a água chegou, esse bendito bairro não estava pronto, não estava terminado. As casas estavam sem portas, não tinha janelas, a água não estava chegando nas residências. No meio do quarteirão fizeram uma latrina e ali todos que moravam em volta usavam o local. Então foi uma coisa muito deprimente, muito triste. Pais de famílias grandes, até importantes, que viviam com um certo conforto, foram obrigados a usar aquilo, porque as casas não saíram a tempo pro povo habitar com um certo conforto.”

Dona Esmeralda, que era casada com um funcionário de Furnas, se mudou para uma das 10 casas já prontas feitas para a equipe, muito diferente do casarão de 17 cômodos que morava com sua família. “Tinha dois quartos, sala, banheiro e cozinha. Um quadradinho. Quantos móveis, louças, colchas que tínhamos, tudo foi dado ou foi perdido no lago. Até os livros jogaram na represa porque não tinha onde guardar. Muita gente perdeu tudo. Perdeu criação, porco, galinha”, lembra.

“Furnas foi isso aí. Guapé ficou uma cidade morta por muito tempo, de 8 a 10 anos. Muita gente foi embora, pra outras cidades, estados. Alagaram as terras várzeas e a pastagem, só sobrou serra, com muita pedra e cascalho. Bancos na cidade fecharam, faltou dinheiro e o povo passou necessidade. A cidade começou a animar depois que começaram a plantar café no cerrado, e aí a cidade desenvolveu”, conta dona Esmeralda. Hoje, além da agricultura, Guapé aproveita a beleza do lago para o turismo.

Na margem da nova Guapé, um antigo bangalô marca o lugar onde as águas não alcançaram na cidade. A casa, uma das únicas não alagadas, se tornou um símbolo de resistência do antigo município e se mantém em pé com sua fachada para a nova cidade e a lateral para o Lago de Furnas. Do bangalô é possível avistar as ruínas da antiga igreja descobertas pela seca desde 2012.

Uma imagem de São Francisco de Assis, padroeiro da cidade, marca onde a Igreja Matriz de 1963 ficava. A seus pés, repousam as ruínas da antiga torre. O santo, com seus olhos virados para a nova Guapé, parece nos dizer que, enfim, Guapé flutuou, e não se afundou.

Antigas travessias
No Pontalete, distrito de Três Pontas (MG), também não se acreditava que as águas tomariam as terras várzeas da região. O morador José Francisco Martins, ou apenas seu Deca, tem 77 anos e se define como o “véio mais véio” do pequeno distrito. Por seus olhos passaram o desenvolvimento da pequena vila de pescadores em uma das muitas áreas de investimento no entorno do lago. Restaurantes vendem pratos com os peixes de água doce típicos da região. No bar dele, a placa anuncia: O Rei do Lambari.

“Quando Furnas disse que ia alagar, ninguém acreditou. Só acreditaram quando um grande fazendeiro, ‘um rico demais da conta’, vendeu a fazenda que tinha em Ilicínea (MG) [uma das cidades que teve terras alagadas por Furnas]. Quando o fazendeiro vendeu as do Pontalete também, o povo acreditou. Isso foi em 1958. Muitas casas foram alagadas, só deu pra tirar o telhado e as madeiras [pra reaproveitar]”, conta seu Deca.

A estiagem fez surgir desde 2012 no Pontalete uma das antigas pontes que ligavam as margens de terra sobre o rio. O distrito fica na confluência dos rios Verde e Sapucaí, hoje reunidos no local pelo reservatório de Furnas. Seu Deca lembra tanto da construção como do fim da ponte, e brinca com a coincidência dos opostos.  “Ela foi construída em 1953 quando Juscelino Kubitscheck ainda era governador de Minas e foi alagada em 1963 pelo presidente JK.  Ele construiu e depois enterrou (risos).”

Com o aniversário de morte do venerável Padre Victor sendo celebrado em Três Pontas, no final de setembro, foi possível ver que a antiga travessia retomou seu uso. Um grupo de romeiros puxava os cavalos para caminharem no lago baixo até a ponte, que serve de travessia para todos chegarem até a outra margem do lago. Em tempos do nível do reservatório normal, o trajeto só seria possível de balsa, que jaz enterrada logo à frente na terra seca do distrito.

Em 2002, a água baixou e foi até o rio”, conta seu Deca, lembrando da estiagem acontecida há cerca de 10 anos, mas pra ele, seca pior que a deste ano não teve. “Em 2011 ficou do mesmo jeitinho [a paisagem], mas não deu essa seca braba que nós estamos passando agora não, em 2014. Porque passou o ano inteiro e não choveu ‘né’. A chuva forte que dá é janeiro, fevereiro e março, que tem a enchente da goiaba e a enchente do anga, agora esse ano não teve enchente nenhuma porque não choveu. De vez em quando dá uma chuvinha, mas a seca continua.”

Desde que a estiagem atinge a região, seu Deca viu o movimento do seu bar cair cerca de 70%. Na calmaria do pequeno distrito, ele passa os dias esperando que a água do céu eleve novamente o ‘Mar de Minas’ que hoje não vive sem.
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