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Sábado, 20 de abril de 2024

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"Não faria tudo de novo", declara Gabeira no dia em que seu livro completa 30 anos

Depois de comemorar os 30 anos da anistia, o escritor, jornalista e hoje deputado federal pelo PV Fernando Gabeira relembra hoje mais um episódio em 2009: os 30 anos de "O Que É Isso, Companheiro?".


O livro conta o que Gabeira viveu durante a ditadura. Relata sua experiência na luta armada contra a ditadura militar nos anos 60, o sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick, em 1969, sua prisão, tortura e o posterior exílio na Europa durante os anos 70. Com a anistia, voltou ao Brasil no final de 1979 e lançou a obra no dia 29 de outubro.

Em entrevista à Livraria da Folha, o deputado falou sobre o livro e o que mudou na sua vida desde então, agora que passou a atuar dentro das instituições -- o que foi, para ele, uma mudança fundamental.

"Antigamente, quando nós estávamos na luta armada, a democracia era apenas uma tática. Agora não, agora é o objetivo final", explicou. Gabeira já havia declarado anteriormente que se arrepende do sequestro, a ação mais radical da guerrilha contra o regime autoritário, e afirmou que desde o episódio, passou a ver a estratégia democrática como a mais importante.

Questionado se faria tudo de novo, o deputado disse "não faria tudo de novo por várias razões: a primeira por que eu seria uma outra pessoa hoje; a segunda, porque fazer de novo dá uma sensação de morte, a gente quer sempre fazer coisas novas."

Ainda afirmou que os jovens de hoje são muito atentos com o que se passa no país, "a juventude atual é envolvida com a política à sua maneira. Hoje os critérios são diferentes, os instrumentos são diferentes. Acho que a juventude atual, através de outros instrumentos, como a internet, é muito atenta."

Gabeira indica o livro para quem deseja ter uma visão pessoal do que se passou no período. A seguir, leia um trecho de "O Que É Isso, Companheiro?":

"HOMEM CORRENDO DA POLÍCIA"

Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáve¬res. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da praça Nunoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher.

Caminhávamos rumo à Embaixada da Argentina, deixando para trás uma parte gelada da cordilheira dos Andes e tendo à nossa esquerda o estádio Nacional, para onde convergia o gros¬so do tráfego militar na área.

Na esquina com a rua Holanda, somos abordados por alguém que nos pede fogo. Uma pessoa parada na esquina. Parecia incrí¬vel que se pudesse estar parado na esquina, naquele momento. Vera me olhou com espanto e compreendi de estalo o que queria dizer: "Coitado, vai cair breve nas mãos da polícia."

Ele se curva para acender o cigarro e vemos seus dedos amarelos. A chama do fósforo ressalta as olheiras de quem dormiu pouco ou nem dormiu. Certamente era de esquerda, o cara parado na esquina. E, como nós, estava transtornado com o golpe militar, tentando reatar os inúmeros vínculos emocionais e políticos que se rompem num momento desses.

Tive vontade de aconselhá-lo: se cuida, toma um banho, não dá bandeira, se manda, sai dessa esquina. Mas compreendi, muito rapidamente, que seria absurdo parar para conversar na esquina de Irarrazabal com Holanda, naquele princípio de primavera.

Nós também estávamos numa situação difícil. A alguns minutos do toque de recolher, a meio caminho da Embaixada da Argentina, nossas chances eram estas: ou saltávamos para dentro dos jardins e ganhávamos asilo político, ou ficávamos na rua, em pleno toque de recolher. Se ficássemos na rua sería¬mos certamente presos e teríamos, pelo menos, algumas noites de tortura para explicar o que estávamos fazendo no Chile, durante a virada sangrenta que derrubou a Unidade Popular. Pessoalmente teria de explicar por que me chamava Diogo e era equatoriano. E não me chamava Diogo nem era equa¬toriano. Tratava-se de um passaporte falso, de um português que emigrara para Quito, e que me dava margem para falar espanhol com sotaque. Português naturalizado equatoriano, caminhando ao lado de uma brasileira e de uma alemã, sem tempo portanto para dar conselhos.

Pois, como ia dizendo, estávamos numa situação difícil. Na melhor das hipóteses, venceríamos a vigilância dos carabineros e cruzaríamos os jardins da embaixada. Começaria aí um exílio dentro do exílio, dessa vez mais longo e doloroso porque as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente. Na melhor das hipóteses, portanto, iríamos sofrer muito.

No entanto, era preciso correr. Correr rápido para chegar a tempo e meio disfarçado para não chamar a atenção dos carros militares. E talvez o cara da esquina nem fosse de esquerda. Foi assim, nessa corrida meio culpada, que me ocorreu a idéia: se escapo de mais essa, escrevo um livro contando como foi tudo. Tudo? Apenas o que se viu nesses dez anos, de 1968 para cá, ou melhor, a fatia que me tocou viver e recordar.

Este portanto é o livro de um homem correndo da polícia, tentando compreender como é que se meteu, de repente, no meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que tomara o poder em 1964. Onde é mesmo que estávamos quando tudo começou?

Sinceramente que saí buscando um pouco de ar fresco. A sala do copidesque do jb tinha uma luz branca e, depois de certo tempo de trabalho, cansava. Era melhor sair para o balcão, olhar a avenida Rio Branco, ver o trânsito fluir rumo ao sul da cidade. Gente voltando do trabalho, no fim da tarde. De repente, não sei como, cinqüenta pessoas se reúnem no meio da rua, tiram suas faixas e cartazes e gritam: abaixo a ditadura. Como? Os carros não podem se mexer: é uma passeata. Mil coisas estavam acontecendo nos telegramas empilhados na minha mesa: guer¬ras, terremotos, golpes de Estado. Ali, diante dos meus olhos, cinqüenta pessoas com faixas e cartazes, iluminadas pelos faróis e meio envoltas na fumaça dos canos de descarga, avançavam contra o trânsito. Mais verba, menos tanques, abaixo a ditadu¬ra, gritavam. Lembrei-me da minha terra. O Guarani Futebol Clube batido mais uma vez, pelo mesmo adversário, irrompen¬do na rua Vitorino Braga com sua bandeira azul e branca, can¬tando "Em Juiz de Fora quem manda sou eu". Aquelas pessoas gritando na rua, a vida seguindo seu curso, o trânsito apenas engarrafado por alguns minutos, tudo isso me fazia pensar. O rosto dos jogadores do Guarani, nossas camisas meio rasgadas, a gente de cabeça erguida enquanto todos atacavam seu ma¬carrão de domingo, macarrão com ovos marca Mira, seu vinho Moscatel.

Tudo parecia já muito remoto depois do golpe de Estado no Chile, com os cachorros latindo e o ruído dos helicópteros patrulhando a cidade. Daí a pouco chamariam para voltar ao trabalho, mas a demonstração estudantil não ia sair fácil da mi¬nha cabeça. Desde 64 que estava buscando aquela gente e aquela gente, creio, desde 64 preparava seu encontro com as pessoas olhando da sacada da avenida Rio Branco.

Em 64 eu tinha dois empregos. Um era no Jornal do Brasil, outro no Panfleto, semanário da ala esquerda do PTB que, mais tarde, depois do golpe, iria sobreviver de forma autônoma como Movimento Nacionalista Revolucionário, mnr. No jb, trabalhava como redator, no Panfleto, como subsecretário de oficinas. Os dois empregos tinham uma importante função para mim. Num trabalhava de acordo com minhas idéias e, no outro, trabalhava para ganhar dinheiro. Isso é ótimo para um depoi¬mento retocado. Na verdade, havia outro interesse, um pouco mais baixo, mas importante também: o jb pagava por mês e o Panfleto, dirigido por amigos, dava alguns vales que permitiam que fôssemos tocando o barco cotidiano. E, afinal, não era um barco muito pesado: vivíamos em cinco num apartamento do 200 da Barata Ribeiro e o aluguel não custava muito, assim dividido por cinco pessoas. Todos eram jornalistas começando carreira. Quase todos comiam no trabalho e, uma vez ou outra, ali no Beco da Fome, que ficava bem perto de casa. Alguns par¬ticipavam do Grupo dos 11, uma forma de organização que o Brizola tinha proposto para a resistência ao golpe. Outros não estavam muito interessados, por desencanto, mal de amores ou mesmo problemas que iam explodindo na vida de cada um, um pouco indiferentes à crise nacional que se aproximava.

Quando irrompeu o golpe de 64, ninguém ficou em casa. Os que participavam do Grupo dos 11 foram fazer a fila das armas do Aragão. Nessa fila muita gente se encontrou, mas as armas não apareceram. Lembro-me de ter ido para a Cinelândia até o momento em que começaram a atirar nas pessoas, de den¬tro do Clube Militar. Um golpe de Estado, pelo menos foi o que senti nos dois que me atingiram, é um pouco como uma grande e emocionante peça de teatro. Quando termina, você sente um grande impulso para estar junto das pessoas de quem gosta, ou mesmo telefonar para saber se estão bem.

Um pouco tocado pelas balas do Clube Militar e um pouco tocado pela vontade de estar perto dos amigos, saí da Cinelândia. Para o Panfleto não adiantava voltar, pois os homens já haviam cercado tudo, recolhido os arquivos e empastelado a redação. Segui para o jb e encontrei um grupo de jornalistas na Rio Branco. Era o que procurava. Fomos juntos para o Sindicato dos Gráficos, onde resistiríamos. E nós, que pensávamos em resistir, acabamos sendo envolvidos na confusão geral que se armou para retirar os papéis, para escapar da polícia. Foi assim também com muita gente no Chile. Você diz que vai resistir, você parte para resistir, mas o que você vai fazer, de verdade, é fugir.

Lembro-me de ter escrito uma carta, de dentro da Embaixada da Argentina, para um amigo do Rio, comunicando que estava vivo. E dizia: amigo, acabo de perder minha segunda revolu¬ção e estou caminhando para o recorde daquele personagem do García Márquez que perdeu doze ou treze, creio. Vi muita gente morrendo, grupos inteiros se entrincheirando nas fábricas e resistindo até o último homem. Mas o movimento geral era de fuga, de retirada. E penso que era o mais inteligente a fazer, consideradas as circunstâncias.

Quando nos reunimos de novo, no 200 da Barata Ribeiro, não era apenas o Brasil que estava derrotado. As nossas próprias caras estavam derrotadas e ficariam assim por muitos dias. São aqueles momentos em que se dá o balanço e não se sabe se de¬vemos parar e chorar ou ajudar os que ainda não conseguiram escapar. Os que deixaram a fila de armas do Aragão tinham encontrado com a Marcha da Vitória, que vinha da Zona Sul. A greve nos jornais foi furada por todos os lados. Os colegas que eram contra o governo Goulart estavam eufóricos, alguns preparando às pressas um livro comemorativo. Outros baixavam do Palácio Guanabara, onde foram também resistir à possível invasão por parte dos fuzileiros comandados pelo almirante Cândido Aragão.

Ainda me lembro de vê-los ali, comentando as mil e uma táticas defensivas que usariam, caso o palácio fosse atacado, in¬sinuando toda a bravura que teriam, caso o combate se travasse. Uma das edições que se preparavam trazia uma história com o coronel Montanha, que tomara o Forte Copacabana com um grito que abalou o sentinela e permitiu sua entrada triunfal. Às vezes, uma história dessas caía na tua mão, para corrigir os er¬ros de português, mudar um ou outro verbo, fazer os títulos e legendas para as fotos. Começávamos a engolir sapos e nem se¬quer imaginávamos que íamos continuar a engolir sapos durante quinze anos nas mais variadas circunstâncias.

Lembro-me de que, na saída do Sindicato dos Gráficos, meio corridos, e já ouvindo vozes do adversário na Rádio Mayrink Veiga, resolvemos cruzar todas as ruelas ao lado da Rio Branco e evitar o tráfego. Numa delas, já estava tão deprimido que joguei uma pedra numa das vitrines e sentei no meio-fio.

Um amigo jornalista, mais experiente, voltou para me buscar: "Está bem que você seja idiota a ponto de achar que jogando pedras na vitrine você está resistindo. Mas não precisa ser demais, a ponto de jogar pedra e ficar aí parado".

Mais tarde, nas noites da clandestinidade, ou mesmo nas conversas de cadeia, pude ir ligando coisas, compondo um quadro mais claro do que foi o golpe de Estado de 64. Para começar ia respondendo as perguntas mais elementares. Onde é que estavam os estudantes? Por que é que não vieram as armas do Aragão? Coisas assim, ainda meio prosaicas, mas que eram, exatamente, as perguntas que me vinham à cabeça.

Os estudantes também estavam tentando resistir. Só que na Universidade de Direito, no Rio, para falar apenas da expe¬riência que me foi mais próxima. Num depoimento prestado em 1970, Vladimir Palmeira, que em 68 era o grande líder do movimento estudantil, contou que eram mais de trezentos. A mesma disposição heróica, as mesmas frases de efeito: resistir até o último homem ou então: daqui a pouco chegam as armas do dispositivo militar do presidente.

E as armas, Antônio? As armas que você traria para nós, Antônio Duarte, da Associação dos Marinheiros? Quantas vezes não perguntei isso durante as partidas de xadrez do exílio. E quantas vezes você não me repetiu esta história, sempre com sa¬bor daquele conto da infância. Alguém foi à festa, vinha trazendo um docinho para nós, vinha passando por uma ponte e pluft, caiu o docinho no rio. Pena."

"O Que é Isso, Companheiro?"
Autor:
Fernando Gabeira
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 232
Quanto: R$ 45,00
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha
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