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Tabu no futebol, psicologia ajuda a explicar sucesso de Ronaldo e fracasso de Pato

R7

Gols marcantes, títulos, dinheiro e sucesso. Estes quatro fatores ainda hoje motivam muitos jovens a tentar uma carreira no mundo do futebol, cada vez mais globalizado e competitivo. A apresentação de gala de Neymar no Barcelona expõe o lado invejável do futebol. Entretanto, nem tudo são flores para os boleiros. Lesões, críticas, poucas oportunidades e uma carreira curta atingem a maioria dos que se arriscam na modalidade, o que pode atingir um velho tabu: o fator psicológico no futebol.

Se parece comum ouvir dirigentes, técnicos e jogadores falarem semanalmente de problemas musculares em seus jogadores, o mesmo não vale para atletas que sofrem com problemas psicológicos, como a depressão. O “medo” de abordar os assuntos da mente no futebol acontece em todo o planeta, não deixando imunes até mesmo o futebol europeu, onde está a nata dos craques mundiais e os clubes mais fortes.

No Velho Continente existem, ainda que escassos, estudos que traduzem em dados e números aquilo que já se suspeita: o volume de dinheiro, expectativas e pressões sobre os jogadores acarretam diversos problemas psicológicos nos jogadores. Se não tratados, podem resultar em episódios desastrosos. Foi o que aconteceu com o goleiro alemão Robert Enke, que cometeu suicídio em 2009, quando defendia o Hannover. Ele nunca superou a morte de uma filha, mesmo tendo sido submetido a um acompanhamento psicológico.

Um dos que se debruçam atualmente no estudo da psique entre os jogadores de futebol é Vincent Gouttebarge, ex-jogador profissional e médico francês que é pesquisador do Centro Médico Acadêmico de Amsterdã, na Holanda. Em parceria com a FifPro, entidade que representa os boleiros em todo o planeta, Gouttebarge trabalha em um levantamento que irá se aprofundar mais no problema que até entre os jogadores é evitado.

— Em toda a sociedade, a saúde mental foi reconhecida como uma questão importante há apenas algumas décadas. No futebol, o reconhecimento disso para a performance é ainda mais recente. Em qualquer pesquisa, depende-se da participação de um grande grupo de pessoas, e no futebol a maioria reluta em participar ou falar sobre isso. Há também o alto custo financeiro de estudos do gênero, pequeno se comparado aos salários dos grandes jogadores – explicou Gouttebarge, em entrevista exclusiva ao R7.

As classes médica e científica vêm tentando desvendar a área há algum tempo. Em 2000, a pesquisadora alemã Astrid Junge conduziu um levantamento com 588 jogadores profissionais e amadores da Alemanha, França e República Checa. A pesquisa abordou a influência dos aspectos psicológicos (preocupação, raiva, ansiedade, alegria, entre outros) nas ocorrências de lesões. Ao final, o resultado foi de que os atletas que se machucavam menos eram aqueles com ansiedade menor, menos preocupados com a sua performance e mais controlados emocionalmente, sem alternâncias bruscas de humor. Um levantamento feito esse ano pelo pesquisador Andreas Ivarsson na Suécia, com 56 jogadores profissionais, reforçou a tese com resultados semelhantes.

Durante a carreira de 15 anos como atleta profissional, Vincent Gouttebarge enfrentou alguns dos dilemas apontados pelos estudos existentes. Tal condição privilegiada, no âmbito da pesquisa, vem contribuindo para o trabalho que ele vem realizando na Holanda.

— Sofri contusões sérias no joelho ao longo da minha carreira. Sempre pensava em me aposentar, em razão dos longos períodos de reabilitação a cada vez que me machucava. É sempre um caminho difícil para voltar ao seu estágio inicial (antes da lesão). Contudo, essas ideias só duravam um dia. Não vivi as condições vistas nesses estudos, mas a minha experiência como jogador logicamente ajuda no meu entendimento da questão.

Psicologia coloca Ronaldo e Pato em lados opostos

No Brasil, aos poucos a psicologia ganha espaço nos clubes de futebol. Ainda reticentes, os cartolas costumam adotar posturas diferentes quando o assunto é a saúde mental dos seus jogadores, mas sempre em busca de resultados, sem um trabalho de médio e longo prazo. Assim, o tabu em torno da saúde mental dos atletas permanece restrito ao resultado final, sem que um título signifique que tudo esteja bem. O contexto brasileiro traduz bem as condições distintas encontradas por nomes como Suzy Fleury, que já trabalhou com os principais clubes do País e a seleção brasileira, geralmente cercada de bons resultados, e Gustavo Korte, demitido do Palmeiras há alguns meses, após a mudança de diretoria e a “insatisfação” com a queda para a Série B nacional.

Na Europa, conhecida pelo seu poder financeiro dos grandes clubes e pela gestão profissional, a situação não é muito diferente, segundo Gouttebarge. Contudo, até mesmo as equipes que possuem profissionais que cuidam da saúde mental dos atletas no Velho Continente ainda apresentam uma visão pouco exemplar no cuidado com os seus jogadores.

— Esses psicólogos contratados pelos clubes buscam apenas maximizar a performance dos jogadores durante o período de contrato. E os problemas de saúde que não estão diretamente relacionados à performance? Ou as dificuldades psicológicas para jogadores profissionais se aposentarem e encontrarem outra área de atuação? Há ainda muito trabalho a ser feito.

Levando em conta o passado recente do futebol brasileiro, dois grandes nomes se destacam quando o assunto são as lesões, com resultados distintos. De um lado, Ronaldo Fenômeno viveu uma carreira na qual colecionou graves lesões, porém sempre conseguindo dar a volta por cima e conquistar muitos títulos, ao passo que nem mesmo a juventude e o talento precoce ajudaram até aqui a carreira de Alexandre Pato, atacante hoje no Corinthians que vive às voltas com contusões e problemas físicos. Nos dois casos, a saúde mental teria tido alguma influência, na glória ou no fracasso?

— Na sociedade, você tem diferentes tipos de pessoas e de jogadores, com seus estilos e características pessoais. No caso dos jogadores jovens, acredito que é preciso guiá-los muito bem durante toda a carreira, com um planejamento que leve em conta os aspectos a curto prazo relacionados ao futebol, e a longo prazo a educação e uma ocupação após o fim da carreira profissional. Esse planejamento passa pela questão psicológica. Os clubes, por sua vez, se interessam apenas pelo desempenho em campo, então algumas carreiras podem sofrer mais do que outras nesse sentido.

Antes de acertar com o Corinthians, no início deste ano, Pato viveu sua pior temporada no Milan, ficando fora de 66% dos jogos do clube italiano na temporada 2011/2012. Nesse ano, o jogador ainda não engrenou, e entre períodos na reserva e lesões, já esteve ausente de quase metade das partidas do clube de Parque São Jorge. Na Itália, especula-se até hoje que o jovem revelado pelo Internacional só deixou o San Siro porque foi considerado “irrecuperável”, segundo a imprensa local.

Já Ronaldo Fenômeno, castigado por diversas lesões nos dois joelhos, sempre se mostrou capaz de dar a volta por cima. Antes da Copa do Mundo de 2002, era dado como “acabado” para o futebol. No Mundial asiático, calou os críticos com gols e o pentacampeonato. Diante disso, é pouco provável que a saúde mental possa ter tido alguma influência na carreira do atacante, mas Gouttebarge vê uma possível explicação para isso.

— É claro que nem todo jogador com contusões graves tem ou teve problemas psicológicos. Acredito que Ronaldo seja um deles, mas ele é também um dos maiores atacantes de todos os tempos. Creio ainda que os clubes pelos quais ele jogou sempre puderam arcar com um psicoterapeuta particular, até mesmo ele pode ter feito isso, diante da sua condição privilegiada. Assim, o trabalho deve ser feito em relação aos outros jogadores profissionais, aqueles que atuam por clubes mais modestos, sem tanto dinheiro. É nesse caminho que estou dirigindo os meus esforços.

Visão abrangente é a palavra-chave para o futuro

Sejam casos trágicos como o de Robert Enke, ou questões inexplicáveis como a de Alexandre Pato, o fato é que o futebol cada vez mais é e será colocado diante das questões psicológicas na busca por novos talentos e aumento do desempenho. Na opinião de Vincent Gouttebarge, o planejamento das carreiras e um maior engajamento de políticos e dirigentes, com políticas que consigam ir além dos clubes, são o caminho a ser seguido.

— A saúde mental está fortemente relacionada com estratégias e forças no campo psicológico. Eu vi muitos jogadores que possuem grandes qualidades físicas, técnicas e táticas, mas ao longo da carreira, por conta da falta de força mental (o que leva aos problemas de ordem mental), eles não alcançaram o patamar que deveriam. Tais problemas também ocorrem com aqueles que se aposentam do futebol, é claro (...). Se tivesse de dar um conselho, diria aos clubes para trabalharem em conjunto com o governo e as associações de jogadores, visando suporte psicológico aos atletas, desde a categoria de base até a aposentadoria. Aos jovens e seus pais, diria para só se associarem a um empresário que ofereça um planejamento de carreira.

A preocupação com a psique no futebol, assim como em outros esportes, ainda avança devagar, mas já gera resultados. Na França, duas associações de jogadores propuseram recentemente um serviço de auxílio psicológico, voltado a jogadores em atividade ou aposentados que estejam passando por problemas mentais. Nos Estados Unidos, a NFL, a liga profissional de futebol americano, implementa regras que possam diminuir os impactos na cabeça, além de auxílio a ex-jogadores. Os protagonistas do espetáculo agradecem.
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