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Quinta-feira, 18 de abril de 2024

Opinião

Capitalismo: bem supremo ou modo de alocar meios?


 
O propósito do presente ensaio deu-se em virtude da exposição argumentativa que o historiador Yuval Nohah Harari faz em seu best-seller internacional, “Sapiens”, ao explicar o papel do capitalismo como a terceira força que, junto aos impérios europeus e o avanço da ciência, a partir de 1.500, moldaram o mundo atual. Em que pese o desafio hercúleo assumido por Harari em apresentar a história da humanidade em pouco mais de quatrocentas páginas, em meu entender, o faz cometendo equívocos em diversos momentos, talvez porque o faça sob a ótica da visão de mundo materialista e avessa a um centro metafísico. Notadamente, ao tentar explicar a natureza de um determinado “modo de produção” que convencionou-se denominar “capitalismo”, o evidenciado equívoco torna-se evidente.

Segundo Harari, o capitalismo teria iniciado como uma “teoria” sobre como a economia funciona, sendo, a um só tempo, descritivo e prescritivo, uma vez que ofereceria um relato do papel do dinheiro (descritivo) e promovia a ideia de que reinvestir os lucros na produção redundaria em um rápido crescimento econômico. Contudo, o capitalismo teria avançado a fronteira do mundo econômico e criado um “ethos” próprio, ou seja, um conjunto de ensinamentos sobre como as pessoas devem se comportar, educar seus filhos e até mesmo pensar. A doutrina fundamental do capitalismo seria o crescimento econômico como um “bem supremo”, ou, na pior das hipóteses, o caminho para este sumo bem, considerando-se que valores como a justiça, a liberdade e até mesmo a felicidade são dependentes do crescimento econômico. Será?

Afirmar que o capitalismo é o resultado de uma teoria, em princípio, poderia ensejar que uma mente consciente o projetou e forneceu as bases para sua implementação como um fenômeno. Em 1776, quando Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” uma economia de mercado já operava na Inglaterra e outros países da Europa. Mises observa que os economistas sempre tiveram consciência do fato de que a economia de mercado é o produto de um longo processo histórico que começou quando a raça humana emergiu dos grupos de outros primatas ou, utilizando-se das categorias enunciadas por Harari em sua obra, desde a “revolução cognitiva”, passando pela “revolução agrícola”, os germes daquilo que convencionou-se chamar de capitalismo já existia em potência na espécie sapiens.

Em sua obra máxima, o tratado “Ação Humana”, Ludwig Von Mises (1881 / 1973) já argumentava que, no campo da economia, a ação humana poderia ser considerada sob outros aspectos, distintos dos binômios bom e mal, justo e injusto. Para este economista é inútil abordar fatos sociais com a postura de um censor que os aprova ou desaprova segundo padrões bastante arbitrários e julgamentos de valor subjetivos. “Devemos estudar as leis da ação humana e da cooperação social como um físico estuda as leis da natureza. Ação humana e cooperação social vistas como objeto de uma ciência que estuda relações existentes e não mais como uma disciplina normativa de coisas que deveriam ser – esta foi a revolução com consequências enormes para o conhecimento e para a filosofia, bem como para a ação em sociedade”. Com isso, Mises quis enunciar que os problemas econômicos necessitavam ser apreciados sob a luz de uma nova ciência, a praxeologia ou uma teoria geral da ação humana e seus problemas epistemológicos envolvidos.

Ao contrário do que afirma Harari, a finalidade da economia não é criar um “ethos” comportamental e ditar o que as pessoas deverão fazer ou se comportar.  Para a Escola Austríaca a economia é uma ciência teórica e, como tal, se abstém de qualquer julgamento de valor. Não lhe cabe dizer que fins as pessoas deveriam almejar. É uma ciência dos meios a serem aplicados para atingir os fins escolhidos e não, certamente, uma ciência para escolha dos fins. Decisões finais, a avaliação e a escolha dos fins, não pertencem ao escopo de nenhuma ciência. A ciência nunca diz a alguém como deveria agir; meramente mostra como alguém deve agir se quiser alcançar determinados fins.

Este é precisamente um dos equívocos da análise de Harari com relação à economia de mercado e, principalmente, um dos erros cometidos pelo marxismo. Vista sob a ótica da ação humana, a economia ou mais apropriadamente, a praxeologia, vai estudar o comportamento consciente e propositado para alcançar fins e objetivos. Não faz parte do escopo da praxeologia os eventos psicológicos que resultam da ação humana. Neste particular, cuida a psicologia. Por que o homem age? Primeiramente, para substituir uma situação desfavorável por outra mais favorável. Imagine um sapiens caçador/coletor que sente o desconforto do clima frio. Esta situação o impelirá a caçar um animal e utilizar sua pele como proteção às intempéries, adquirindo com esta ação propositada uma situação mais confortável. Com efeito, a praxeologia é indiferente aos objetivos finais da ação. No exemplo dado, não interessa se nosso caçador/coletor, ao atingir a situação de conforto, ostentará seu novo “casaco de pele” aos demais membros da tribo. Suas conclusões são válidas para todos os tipos de ação. Independentemente dos objetivos pretendidos. É uma ciência de meios e não de fins.

Por que então a palavra capitalismo é utilizada por tantos como uma espécie de anátema ou que o capitalismo matou milhões de pessoas ou que é imoral etc? Parte da resposta foi fornecida no parágrafo anterior: desconhecimento da natureza da ciência econômica como uma ciência praxeológica. A outra parte reside na crítica marxista ao capitalismo que contagiou corações e mentes a partir da segunda metade do século XIX até os dias atuais. A riqueza gerada pelos mercados não é uma mágica ou dádiva dos deuses, ou simplesmente fruto da exploração de maldosos capitalistas de operários oprimidos. Trata-se da alocação racional de recursos escassos, meios, com objetivo de criar bens ou serviços que proporcionarão uma melhoria no conforto daqueles que demandarem voluntariamente tais mercadorias. Mas isto não poderia ser organizado sob outro arranjo? A resposta dura e verdadeira é não. Somente em economias de mercado, funcionando em um ambiente de trocas voluntárias é possível a formação dos preços, viabilizando-se o problema do cálculo econômico. Os preços funcionam como indicadores ou informações utilizadas no cálculo de lucros e/ou prejuízos quando da alocação dos meios escassos na criação de bens e serviços. Este fenômeno é IMPOSSÍVEL em economias comunistas e/ou planejadas centralizadamente.

Entender a economia de mercado e o crescimento econômico como um “bem supremo” é confundir meio com finalidade. O modo de produção capitalista “cria” riqueza, via poupança, investimento, empreendedorismo e capacidade gerencial. Aloca recursos escassos porque faz o cálculo econômico. Redistribuição de riqueza, desigualdade de renda e/ou social não se resolve destruindo ou manipulando mercados. A experiência já demonstrou a falácia do controle sobre mercados livres. Quem controla o regulador?

Talvez o homem moderno precise aprender a realizar um movimento centrípeto em direção a um centro metafísico no sentido de compreender a realidade do mundo que o cerca e não projetar suas expectativas de vida feliz apenas na aquisição das mercadorias capitalistas que melhoram o seu nível de satisfação material ou o coloquem em uma situação de conforto em face de outra desconfortável. É certo que vivemos em uma época de abundância impensável nas sociedades pré-capitalistas. Retroceder não é uma opção. Não mais seremos caçadores/coletores. A revolução científica ainda está longe de terminar. O conhecimento cada vez maior da natureza promovido pela ciência moderna exigirá enorme esforço na solução dos dilemas morais inerentes a esse processo.
 
Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)
 
 
 
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