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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

Opinião

O risco do "faz de conta" da garantia da merenda escolar em Cuiabá com o Covid-19

Autor: Rosana Laura de Castro Farias Ramires

24 Abr 2020 - 08:00

Por meio da Lei 13.987/2020, o Governo Federal alterou a Lei 11.947/2009, a qual, dentre outras matérias, disciplina o atendimento da alimentação escolar, para o específico fim de assegurar aos alunos da rede pública de educação básica a distribuição dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos à conta do PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Antes mesmo do advento dessa Lei nacional, o Município de Cuiabá, por meio do Decreto 7846/2020, reconheceu que "dentre os 54.000 alunos matriculados nas unidades escolares municipais, mais de 10.000 estudantes tem a merenda escolar como o seu único alimento diário". Em razão disso, por meio do artigo 3º desse Decreto, o Município assegurou que a Secretaria Municipal de Educação continuaria a fornecer merenda escolar aos alunos cuja família é beneficiária do programa "Bolsa Família". Para tanto, o mencionado Decreto Municipal dispôs competir a qualquer membro da família desses alunos receber essa alimentação na unidade escolar os alimentos, conforme horário de retirada regulamentado por Portaria a ser expedida pela Secretaria.

Sem adentrar na análise e nas considerações acerca dos aspectos formais do Decreto e de sua aparente ilegalidade, por extrapolamento do disposto na Lei Federal nº. 13979/20, e aparente inconstitucionalidade, por violação ao princípio da separação dos poderes, posto que furta o controle legislativo sobre a matéria, é preciso reconhecer que a tomada de decisão governamental municipal foi materialmente acertada e compatível com direito humano à alimentação adequada (artigos 6º e 208, inc. VII, CRFB) e voltada ao resguardo do direito à vida e à dignidade da pessoa humana (art. 1º , III, CRFB).

Com efeito na contramão da alimentação, caminha a fome e como adverte Josué de Castro, a fome "(..) é um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. É um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana (...)".

Ademais, se trata de medida que se compatibiliza com a Lei Federal nº 13.979/20, que trata das medidas de enfrentamento ao coronavírus, pois ela elencou a manutenção e funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais como uma das medidas de enfrentamento que deverão ser adotadas (artigo 3º, § 8º). Dentre esses serviços essenciais, na forma como regulamentado pelo Decreto Federal 10.282/20, encontra-se a "produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de (...) alimentos e bebidas" (artigo 3º, XII).

Todavia, com a mesma "mão reguladora" que o Município de Cuiabá manteve a asseguração desse direito fundamental elementar à vida humana, tirou-o. Isso porque, subsequentemente, determinou a suspensão do passe livre estudantil, na forma como previsto no inciso I do artigo 9º do citado Decreto. Como, pois, famílias carentes, governamentalmente reconhecidas como dependentes do Programa Bolsa Família, terão recursos para se descolarem diariamente aos respectivos colégios municipais para retirarem a alimentação garantia pelo Decreto Municipal?

Aparentemente, a medida assecuratória da manutenção do direito à alimentação escolar é propícia e constitucional, mas sua modelagem não. Faltou ao Município visão sistêmica das estratégias que visou adotar.

Portanto, se o Município visa evitar aglomerações no transporte público municipal, deveria ter garantido a merenda escolar por meio de cartão ou vale alimentação aos estudantes da rede pública de ensino, tal como o fez o Distrito Federal mediante o lançamento do Programa Bolsa Alimentação Escolar Emergencial.

Urge uma solução governamental sobre o problema não solucionado e uma fiscalização mais atenta da vereança e do Tribunal de Contas acerca da eficiência e efetividade em torno da modelagem das políticas municipais de "contenção do COVID-19", sob pena do direito à alimentação escolar se tornar um lamentável "faz de contas".

 

Rosana Laura de Castro Farias Ramires é advogada.
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