Olhar Direto

Terça-feira, 23 de abril de 2024

Opinião

Desafios para a polícia na pandemia

Segundo Egon Bittner, a polícia é definida pela sua capacidade e autoridade em usar a força. E porque se espera que ela o faça sempre que necessário, a polícia é chamada a agir em resposta a "algo que não deveria estar acontecendo e sobre o qual alguém deve fazer alguma coisa imediatamente"[1].

Isso revela, entre outras coisas, que apesar da concepção tradicional sobre a polícia enfatizar a repressão criminal como elemento fundamental de sua missão, a responsabilidade pela aplicação da lei e manutenção da ordem vai além. A mesma polícia que é um instrumento de poder na sustentação do binômio "lei e ordem" a um tempo, é também um serviço público essencial suscetível de ser requisitado por qualquer pessoa em outro.

Para algumas pessoas, a polícia é o serviço de emergência de último recurso; para outras, a polícia é a instituição estatal mais presente. Na prática, o que vemos é a mesma polícia, os mesmos policiais, que ao final de uma ação repressiva de sustentação da ordem pública, auxiliarão o trânsito em um engarrafamento, salvarão os feridos de um acidente, acolherão pessoas agredidas, socorrerão alguém com transtorno mental, localizarão uma criança perdida; etc. Ou seja, os deveres dos policiais são de uma variedade extraordinária, e não há problema humano que não possa vir a se tornar um assunto de polícia.

Não seria diferente durante a pandemia da COVID-19, momento que apresenta desafios sem precedentes para a polícia. Nesta conjuntura, a polícia ao redor do mundo está enfrentando aumento em alguns crimes, redução em outros, assumindo novas atribuições e papéis, e simultaneamente precisa reavaliar seus próprios procedimentos de trabalho no afã de proteger seus profissionais que, em decorrência da natureza de suas atividades, encontram-se extremamente expostos ao contágio pelo SARS-CoV-2.

Ao mesmo tempo em que os crimes nos espaços públicos devem diminuir, principalmente pela ausência da vítima em potencial nesses ambientes, casos de violência doméstica e de gênero tendem a aumentar devido à onipresença do agressor agravada pela presença de precipitadores situacionais da violência, tais como o confinamento nas casas e o incremento das dificuldades econômicas e do estresse social.

A título de exemplo, dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro indicam uma redução de 52% nos roubos realizados nas vias públicas no estado no mês de março de 2020 quando comparado a março de 2019. Por outro lado, dados do Ministério Público do Estado de São Paulo mostram um aumento de aproximadamente 30% nos pedidos de medidas protetivas para vítimas de violência doméstica durante a pandemia.

Com o fechamento de bares e casas de shows, o comportamento desordenado, brigas e pequenos delitos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas provavelmente reduzirão. O fechamento das fronteiras e o maior monitoramento de portos e aeroportos diminuirá drasticamente o tráfico de drogas e o contrabando, todavia, disputas entre as facções criminosas poderão aumentar à medida em que elas venham a competir entre si por uma fatia da receita em declínio.

Ademais, nossa maior presença on-line contribuirá para o aumento nos casos de crimes cibernéticos, ataques de hackers, fraudes de cartão de crédito e acesso a conteúdos pedófilos na internet.

A polícia, especialista no controle do espaço público, está descobrindo que esta gestão não se faz apenas em razão da repressão à criminalidade, mas também em nome da preservação da saúde pública. Assim, novos papéis como o auxílio a profissionais da saúde, a imposição de restrições ao direito de ir e vir dos cidadãos, a fiscalização do uso de máscaras, o controle de aglomerações mesmo em ambientes privados, entre outros, passarão a ser realidade no cotidiano do policiamento.

A polícia de Connecticut nos Estados Unidos, por exemplo, está testando drones que detectam tosse, febre, frequências cardíaca e respiratória, mede a distância entre as pessoas e alerta sobre distanciamento social por meio de um aviso verbal.

No Brasil, a polícia também vem assumindo novas funções. A Portaria n. 151/2020 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por exemplo, estabelece que a Força Nacional poderá atuar na garantia do funcionamento dos centros de saúde; na segurança e auxílio na distribuição e armazenamento de insumos médicos, farmacêuticos, gêneros alimentícios e produtos de higiene; no controle sanitário em portos, aeroportos, rodovias e centros urbanos; na realização de campanhas de prevenção; na proteção de locais para a realização de testes rápidos por agentes da saúde pública; entre outros. Neste cenário, a integração, a troca de informações e o fortalecimento de parcerias entre setores da saúde e a polícia são essenciais.

Os policiais estão constantemente nas ruas em atividades que requerem interação frequente e próxima com os cidadãos, o que os coloca em alto risco de contágio e disseminação do vírus. Assim, a pandemia pode acarretar uma grande diminuição do efetivo das forças de segurança, daí a necessidade de proteção especial a estes profissionais, já que uma alta taxa de absenteísmo sobrecarregaria os recursos policiais e reduziria a capacidade da polícia prestar todos os serviços que dela se espera.

Em Nova Iorque, epicentro da pandemia nos Estados Unidos, 19,8% dos policiais que atuam nas ruas, mais de 7.000 agentes, estavam de licença médica na primeira semana de abril por terem contraído ou suspeitarem ter contraído a COVID-19. Até o dia 24 de abril, 31 mortes de policiais nova-iorquinos em decorrência da nova doença haviam sido registradas. Em São Paulo, na segunda quinzena de abril havia aproximadamente 800 policiais afastados, 0,7% do efetivo das forças de segurança, e três mortes de policiais confirmadas.

A fim de minimizar a exposição de policiais ao vírus é importante considerar tais profissionais como parte dos grupos de risco e adotar o uso de equipamentos de proteção individual adequados, e a prática de medidas de higiene e distanciamento social, além de incentivar aqueles que estão doentes ou que sentem que podem estar doentes a permanecer em casa como forma de controle de infecção no local de trabalho.

Num momento em que as polícias estão enfrentando desafios sem precedentes, é importante ter em mente que é mais provável que as pessoas respeitem, cooperem e cumpram voluntariamente suas obrigações quando consideram que as autoridades que as impõem são dignas de confiança e respeito. Quando as pessoas consideram a polícia injusta, desrespeitosa e descuidada com a dignidade humana, não apenas a confiança é perdida, mas também a legitimidade é prejudicada e a cooperação é retirada do processo. Na ausência de apoio dos cidadãos, o trabalho da polícia fica mais difícil e os objetivos declarados de manutenção da ordem pública ficam ainda mais longe do alcance.

Como diz Dominique Monjardet "nada é mais enganador do que a distinção de uma 'boa' polícia, que protege, em oposição à 'má' polícia, que reprime"[2]. Agora, mais do que nunca, é preciso lembrar que a função da polícia é também salvar vidas.




BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Tradução de Ana Luisa Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: Sociologia da Força Pública. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.




Franklin Epiphanio Gomes de Almeida é Tenente Coronel da PMMT, Coordenador Estadual da Rede Cidadã e mestre em Policing pela University College London.
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