Olhar Direto

Quinta-feira, 18 de abril de 2024

Opinião

Do silêncio dos hipócritas ao regozijo dos oportunistas

Os primeiros anos após o nascedouro da Constituição brasileira caracterizaram-se por uma efervescência de busca por direitos.

Havia, no mundo jurídico, uma grande inquietação por parte de todos os seus operadores acerca do objeto e alcance das normas constitucionais, o que gerou uma explosão de publicações de artigos e obras sobre o tema.

O direcionamento dos temas era patente, eis que havia uma grande tendência dos autores à escrever sobre assuntos ligados aos direitos civis/humanos – supostamente violados no período anterior à promulgação da Constituição de 88 – e sobre direitos e garantias fundamentais, notadamente do cidadão em relação ao Estado, incluindo-se evidentemente, neste espectro, os direitos da pessoa objeto de uma persecução penal, em juízo ou de forma antecipada.

Os posicionamentos adotados por esta comunidade - formada, principalmente, por advogados e professores universitários – norteou não somente o ensino jurídico, quanto também a jurisprudência nos anos seguintes.

E foram essas circunstâncias que nos fizeram chegar onde estamos atualmente, onde o Estado preza mais pelos direitos de um indivíduo que, pela prática de um crime, está sujeito à uma pena privativa de liberdade, do que daquele cumpridor da lei que, por necessitar de uma ação estatal – seja no âmbito da segurança pública, da saúde ou mesmo em questões de somenos importância, como o atendimento de um órgão de trânsito – tem diuturnamente as suas prerrogativas violadas.

O mais impressionante é que, disso, muito pouco se fala e quase nada se publica.

A atual pandemia do coronavírus fez aflorar essa histórica hipocrisia dos pseudo juristas defensores dos alegados direitos fundamentais do cidadão.

Atualmente verifica-se um grande silêncio da comunidade jurídica em geral sobre os decretos estaduais e municipais, e também de decisões judiciais, que tolhem alguns dos direitos mais fundamentais do cidadão, sendo que os responsáveis por referidos atos sequer teriam – em tese (quando dissemos em tese, filiamo-nos à possibilidade de teses/antíteses dentro de balizas legais e constitucionais determinadas, ignorando as inovações dos Tribunais Superiores que extraem situações inexistentes do texto constitucional) – competência para referidas restrições.




Apesar de termos uma posição definida sobre a forma mais adequada de tratamento da pandemia, considerando para tal a situação nacional, não é esse o mote da discussão, até porque teríamos que adentrar um tema não somente tormentoso mas que causa evidente polarização.

A questão aqui é eminentemente jurídica e pode ser resumida em um breve questionamento: porque aqueles que mais se identificam com a defesa de liberdades individuais – e que comumente escrevem sobre isso – silenciam quando por um simples decreto viola-se não somente direitos básicos, quanto também garantias fundamentais positivadas na Constituição ?

E a resposta parece-nos evidente: hipocrisia e oportunismo !

Ora, um indivíduo que se qualifica como garantista (ressalte-se que não concordamos com essa qualificação para aqueles que assim se auto qualificam) o deve ser em qualquer situação, e não somente naquilo que lhe interessa.

E é justamente nos momentos de tensão, de probabilidade de ruptura institucional e de calamidade, que os verdadeiros defensores de determinada linha de pensamento hão de enfrentar os problemas de frente, assumindo, evidentemente, as consequências de seu posicionamento.

Ora, mostra-se muito fácil defender liberdades quando se fala de um Estado opressor que supostamente escolhe determinados grupos vulneráveis ou minoritários para neles despejar a sanha acusatória de um processo penal injusto. Essa falácia, que ganhou contornos de política pública e de orientação decisória para juízos e tribunais, escancara a miséria interpretativa da realidade fática nacional, mormente para aquele que simplesmente anda nas ruas sem estar acompanhado de seguranças armados.

Porém, esses mesmos pseudo defensores de liberdades individuais calam-se quando, exemplificadamente, um prefeito de uma longínqua cidade do interior brasileiro, supostamente parametrizado por seu comitê de enfrentamento à pandemia de coronavírus, simplesmente impede a circulação de pessoas, trancando-as em casa ou, puramente, impede a entrada ou passagem de terceiros na área territorial do município. E mais: sem qualquer conhecimento médico ou científico, impede o acesso da população à determinada medicação, por pura orientação político/ideológica.

Muitos esquecem-se que, com liberdades, advém responsabilidades e, principalmente, consequências.

Não há liberdades sem consequências e, em determinadas situações, as consequências podem ser gravosas. É justamente a assunção dessas consequências, independentemente de seu grau e em nome da mantença daquela liberdade, que demonstra a capacidade de determinada sociedade na garantia de seus direitos fundamentais.

E isso não pode ser objeto de negociação ou mesmo de submissão.

Nisto reside a grande hipocrisia destes pseudo defensores das garantias fundamentais, eis que relativizam seus posicionamentos baseados no medo e temor das consequências daquela garantia outrora defendida.

Por outro lado, nesta nefasta esfera de pensamento, há também os oportunistas de plantão que, apesar do oportunismo, não se desfazem também da carapuça da hipocrisia.

Nesta discussão, insere-se a questão da disponibilização, ou não, de medicação sem acadêmica eficiência comprovada, cuja utilização é voluntária e opcional.

Primeiramente há de se ressaltar que, em ciência, a orientação majoritária pode estar equivocada. A história do pensamento científico já nos demonstrou, por incontáveis vezes, que uma orientação tida como pacífica ou mesmo unânime muitas vezes é desafiada por uma única pessoa, que altera todo o panorama do conhecimento. As descobertas do físico Albert Einstein são um grande exemplo desta guinada do pensamento científico.

Portanto, aqueles que defendem determinadas posições em campos cujo conhecimento não é de sua esfera de atuação e o fazem com parcos conhecimentos e opiniões adquiridas, muitas vezes, pela mídia ou por redes sociais, não estão a falar em nome da ciência – ainda que assim de pronunciem -, mas sim em nome de suas convicções pessoais, muitas vezes entorpecidas por inclinações ideológicas.

A novidade e velocidade do contágio do novo coronavírus infelizmente não possibilitou à comunidade científica a adoção de protocolos clínicos para tratamento com eficácia comprovada.

Ainda não se conhece muito bem a doença.

No entanto, a ausência de comprovação de eficácia de determinado tratamento por meio de longos, demorados e incontestes testes clínicos não pode servir de justificativa para a não disponibilização de tratamento que, não somente empiricamente mas também por diversos estudos que não ainda atingiram os protocolos necessários para aceitação no mundo acadêmico, demonstram uma eficácia significativa.

Adotamos tal posicionamento pois não estamos em uma situação de normalidade, mas de pandemia.

Uma situação que bem ilustra referida celeuma é a das tropas americanas no pacífico, durante a 2º Guerra Mundial. Como se sabe, a luta contra os japoneses causou inúmeras baixas nas tropas aliadas, principalmente entre os norte americanos.

Vendo que os estoques de sangue para transfusão eram insuficientes para o atendimento da demanda, os hospitais de campanha adotaram um protocolo inusitado: passaram a utilizar água de coco, abundante nas ilhas do pacífico, como substituto.

Não precisa ser especialista para concluir que, em situações de normalidade, tal protocolo jamais seria aceito, seja pelos riscos que causava ou mesmo pela ausência de acadêmica comprovação de sua eficácia, já que dificilmente, em situações ordinárias, haveria a possibilidade de separar-se o grupo de controle que recebe a transfusão com água de coco, daquele que recebe sangue.

O exemplo dado pelo médico francês Didier Raoult é instigante: não utilizar uma medicação de eficácia empírica verificada inúmeras vezes, por ausência de comprovação protocolar de sua eficácia em momento de necessidade, é o mesmo que deixar de utilizar um paraquedas quando de uma pane em uma aeronave, pois não houveram os testes necessários para comprovar sua eficácia, que no caso envolveria um ensaio onde 50% das cobaias fossem empurradas do avião sem a utilização de paraquedas, somente para confirmar que a taxa de mortalidade com a utilização do paraquedas seria menor.

O leitor deve estar se perguntando o porquê, em um artigo desta natureza, estar-se-á discutindo campos de pensamento tão diversos, qual seja o jurídico e o farmacêutico, sendo que este último sequer é de profundo conhecimento do articulista.

A razão é para somente demonstrar que os argumentos de um campo para outro, se eventualmente o argumentante fosse alguém de pensamento sincero, não poderiam ser tão díspares.

No campo jurídico, aqueles que defendem a adoção de medidas violadoras de básicos direitos individuais por agentes sem competência o fazem com a justificativa de que a situação que se apresenta é anômala e, por isso, justificado estaria tal modo de agir.

No entanto, a mesma justificativa de excepcionalidade não serve para a utilização de medicação sem eficácia academicamente comprovada, ainda que empiricamente verificada, eis que necessário seria o seguimento de todos os protocolos científicos para tal.

O que se verifica nas circunstâncias que vivemos hoje em dia é que os pseudo defensores dos direitos individuais, aqui qualificados de hipócritas, simplesmente silenciam quando os direitos individuais violados o são em nome da ciência, em razão do momento de exceção, enquanto os hipócritas de plantão insurgem-se contra uma medicação, também com justificativa na "ciência", alegando que uma excepcionalidade não poderia permitir a utilização de uma medicação sem eficácia comprovada.

Resta sabermos qual será o prejuízo maior, o jurídico ou o farmacêutico, eis que quando falamos em manutenção da vida e da liberdade, todos já fomos prejudicados.




Juiz de Direito. Ex-delegado de polícia e ex-advogado.
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