Opinião
Otimismo é importante, mas encare a realidade
Autor: Manoel Vicente de Barros
06 Nov 2020 - 08:00
"As pessoas podem prever o futuro somente quando ele coincide com seus próprios desejos, e os fatos mais grosseiramente óbvios podem ser ignorados quando não são bem vindos " - George Orwell
Sim, a incapacidade de prever o que contraria seus anseios e ambições certamente já nublou seu raciocínio lógico.
O termo inglês wishful thinking, que é de difícil tradução, descreve a distorção do entendimento da realidade pelo o que a pessoa quer que seja aconteça. É acreditar em algo pelo desejo (wish) que isso seja verdade, é um viés de desejabilidade.
Os exemplos atuais da pandemia de COVID 19 contextualizam o fenômeno.
Incidência de luz solar, vacina BCG, hidroxicloroquina e outras peculiaridades mato-grossenses eram argumentos para refutar a possibilidade do estado ser atingido pela doença.
Não fomos só alcançados, como ainda estamos longe de superar a situação.
Acreditar que uma doença que atingiu de países europeus, ao Irã e metrópoles americanas verdadeiramente não atingiria a cidade em que você mora é uma crença totalmente desvalida de uma análise fria dos fatos.
Como um exercício de engenharia reversa, o wishful thinking começa pelo desejo inicial: Não quero que eu e os que amo sejam atingidos pela doença. Quase de forma instantânea, uma lente enviesada passa a selecionar, ponto a ponto, o que confirma esse futuro idealizado.
A projeção do futuro é elevada ao patamar de evento consumado e partir disso o que confirme o desfecho se torna argumento, o que contraria é sumariamente refutado.
Quer observar isso ao vivo e a cores? Pergunte aos seus conhecidos envolvidos em campanhas eleitorais sobre as chances reais de eleição do seu candidato. Se prepare para testemunhar uma verdadeira alquimia de indícios e argumentos que dão a vitória como certa.
Ser otimista quanto ao futuro é necessário, nos motiva a sair de casa, mas no wishful thinking o desejo infla o otimismo. Ele distorce a cognição ao ponto de alguém investir tempo, dinheiro e energia em busca de um resultado altamente improvável e algumas vezes impossível.
Aplicações em esquemas de pirâmide, a crença na vacina contra o coronavírus antes do Natal, a certeza de uma virada de última hora na corrida eleitoral são frutos dessa cegueira parcial que conforta, justifica ações e ultimamente funciona como defesa à dureza da realidade, sempre indiferente a sentimentos.
No contexto de disponibilidade infinita de notícias que oferecem versões alternativas de dados concretos, é fácil selecionar as que reforcem o seu viés.
Sem enxergar defeitos, sem perceber falhas nas nossas opiniões não conseguimos fazer um ajuste de rota. Não adotamos decisões enérgicas e rápidas baseadas em ciência, não concretizamos reformas políticas e erramos em decisões da vida pessoal por se apegar a versões editadas dos fatos.
Uma população que perde a visão crítica quanto a suas capacidades, que não aceita dados contraditórios e não pondera com ceticismo, se torna presa fácil para marketeiros, engenheiros sociais e se encanta com barcas furadas como a construção de um ar condicionado no centro de Cuiabá ou um veículo leve sobre trilhos.
Fique atento, para evitar uma distopia orwelliana o otimismo é importante, mas encare a realidade.
Manoel Vicente de Barros é Psiquiatra em Cuiabá e atua no tratamento de Depressão e Ansiedade, CRM 8273, RQE 4866.