Olhar Direto

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Opinião

Você e seu corpo são coisas distintas

Atire a primeira pedra quem leu um romance que, posteriormente, adaptado paras as telas não se sentiu decepcionado com a caracterização de suas personagens prediletas. A personagem que amamos nas letras do autor, de repente, transforma-se num ator, de carne e osso, e ele não é nada parecido com aquilo que criamos intimamente em nossas cabeças. Ao ler o romance, percebemo-las pelas sensações que nos causam; suas identidades estão dissociadas de uma exigência facial. O que temos, ao ler, é uma visão ilimitada de suas totalidades, todas as esquisitices e as façanhas, todos os acertos e os choros, e isso associamos a nós mesmos. Aparências fluídas e nebulosas que permitem uma multiplicidade de formas.

O desconforto que podemos sentir nas telas reflete, numa escala bem menor, a dor que provavelmente sentimos com certo quê de intensidade dentro de casa: o momento de se olhar no espelho. Temos a tendência de enfitar para o rosto espelhado e pensar que as feições que ali aparecem são extremamente infiéis a nós. Isto não quer dizer que odiemos nossa aparência, ainda que a normalidade implique a inferência de que sim. Igual a um personagem de um romance, nós nos conhecemos e nos reconhecemos na escuridão reconfortante da nossa mente, onde não colocamos limites sobre quem podemos ser. Nesse interior, somos amplos em latitude.

Possuímos milhares de humores. Somos uma mistura desconcertante do altruísmo e do egoísmo, do imoral e do moral, do bem e do mal. Albergamos em nós possibilidades de cunho infinito; nosso genoma o prova. Praticamente qualquer vida que já borbulhou na superfície do planeta ecoa, de certo modo, dentro de nós. Portanto, inquirimos com perplexidade a apresentação que nos é mostrada quando encaramos o espelho: uma pessoa em particular, com um rosto apenas.

Se perguntar de onde esse sentimento começou, a resposta está na adolescência. Nesse período, tornamo-nos cientes de como nossos corpos devem parecer para os outros pela primeira vez. A consequência dessa conclusão é a de que estamos engaiolados, condenados a habitar um corpo, abandonando a ideia da infância de que poderíamos ser tão livres de definição quanto uma nuvem. Nosso rosto no espelho pode ser, pra muitos, a imagem de algum ator interpretando a nebulosa de pensamentos, e, muitas vezes, não coerente com o que ela pensa. Alguém está interpretando a gente – e não temos certeza se gostamos da pessoa que foi escalada.

Por certo, já devemos ter ouvido conselho semelhante a este: ame-se, ame tudo o que aconteceu a sua vida e, sobretudo, a seu corpo como ele é; considere-se com entusiasmo e gratidão, porque seu corpo é uma dádiva da natureza. Confesso que há boa intenção no conselho e chega a ser adequado. Porém, há um extremo radical a ser experimentado, se o conselho não chegou a surtir efeito: auto-rejeição corporal permanentemente indignada, mas alegre e triunfante. Explicarei: olhe-se no espelho e se dê um sorriso rebelde cheio de fúria, pois quem está refletido não é o que você é e nunca será. Muitas vezes, o ator escalado para interpretá-lo nas faces da “dádiva da natureza” não o representa e, por isso, você não se deve limitar ao seu corpo.

Da auto-rejeição consciente, surge uma leveza libertadora. Não precisaremos nos preocupar se nossos rostos nos representam ou não, porque sabemos que com certeza não representam. No mundo, há um exército de pessoas, seres engraçados e tristes, inteligentes e simples, masculinos e femininos, lutando contra a indignação de não se sentirem representados nesse cinema, que é a nossa existência. E, é claro, o mais importante: ao aceitarmos essa filosofia, sentiremos compaixão, por nós mesmos e pelos outros. Você e eu somos mais que nossos corpos mostram.


Heduardo Del Pintor Vieira é Psicólogo – CRP: 08/32353 com pós-graduação em Psicoterapia Psicanalítica. Meu contato está aberto para te ouvir: (41) 99283-8970 / Email: psi.heduardodelpintor@gmail.com
 
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