Olhar Direto

Sexta-feira, 29 de março de 2024

Opinião

2021: Prenuncio do mundo pós-EUA?

Cinco pessoas mortas após assalto ao Capitólio. Mais de 50 pessoas detidas em invasão à sede do poder legislativo norte-americano. Presidente derrotado em eleição convoca manifestação para impedir direito de representação da maioria da população estadunidense. Amotinador invade gabinete de democrata Presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América. Manifestante ultradireitista descamisado, vestindo gorro com pelagem e chifres de bisão ocupa a cadeira de Presidente do Senado norte-americano durante invasão ao Capitólio. Trump procura apaziguar o ataque e depois manda recado aos agitadores: “vocês são muito especiais, amamos vocês”. Separadamente nenhum desses fatos, que poderiam ser (e possivelmente são) as manchetes mais alarmantes de uma era, é capaz de dimensionar o distúrbio à ordem democrática ocidental provocada pelos eventos ocorridos nesta segunda-feira, 6 de janeiro, dia em que quase 4 mil vidas foram perdidas pela pandemia. A data já cravou seu lugar nos livros de história que podem sugerir um ponto de clivagem nos rumos da maior potencia econômica do globo.

Esse evento, simbólico, provocou-me a recorrer a um artigo que viralizou em Agosto de 2020, publicado pelo antropólogo canadense Wade Davis para a versão americana da revista Rolling Stones. O texto que segue é uma adaptação traduzida de “The Unraveling of America: How COVID-19 signals the end of the American America”. Alguns argumentos adicionais são trazidos das obras O Mundo Pós-Ocidental: Potencias emergentes e a nova ordem global (Editora Zahar-RJ), de Oliver Stuenkel e de Era dos Extremos: O breve século XX (Cia das Letras-SP), escrito pelo historiador egípcio, naturalizado britânico, Eric Hobsbawm.

Nunca havíamos, coletivamente, vivenciado um fenômeno de proporções globais com tamanha cobertura informativa. A segunda guerra mundial externalizou a tragédia europeia através das ondas de rádio, com o Vietnam fora despertado o sentimento antibélico a partir dos lares da classe média norte-americana e as guerras do golfo, do Iraque e do Afeganistão atingiram status de programas televisivos seriados. Mas não há precedentes para uma ameaça existencial tão presente. Desde meados de março, é praticamente impossível passar um dia sem ter contato com algum dado que, de alguma maneira, remeta à pandemia, o relance de uma face sem máscara já constrói o elo. Países desenvolvidos e em desenvolvimento enfrentam medos e incertezas similares, ansiando pela eficácia da bala de prata, independente de seu país de origem.

Em pouco mais de um ano, a civilização que conhecemos e cultivamos vem se mostrando imponente diante de um parasita 10.000 vezes menor do que um grão de sal. Ele ataca não só os nossos corpos biológicos, como também o esteio sagrado da espécie humana, o corpo social, nossa capacidade comunitária que nos catapulta para a posição de uma espécie supostamente superior. Como apontou o antropólogo Wade Davis (https://www.rollingstone.com/politics/political-commentary/covid-19-end-of-american-erawade-davis-1038206/) conectividade representa, para o homem, o mesmo que as presas e garras para uma onça.

Tudo que fizemos, até meados de outubro, foi um esforço para diminuir os níveis de contaminação e “achatar a curva”. Passados dois meses, a necessidade, na maioria dos casos, mas também a displicência e surtos ideológicos manicomiais atuam como parceiros do vírus. Boa parte do mundo prende a respiração esperando pelo arremate das vacinas. Anteriormente, a vacina mais rápida já desenvolvida na história foi a de caxumba e levou 4 anos para ser desenvolvida. No dia 4 de dezembro do longínquo ano de 2019, a cidade de Wuhan registrava o surgimento de uma pneumonia misteriosa, de lá para cá a COVID-19 ceifou, pelo menos, 1,7 milhão de vidas. Só nos Estados Unidos e no Brasil mais de meio milhão, se considerarmos ingenuamente a exatidão dos números. Quase 20% da população brasileira declara que não tomará vacina, a depender de sua procedência, remetendo ao começo do século passado, nas ruas Rio de Janeiro.

Pandemias e pragas mudaram o curso da história diversas vezes e, em geral, os contemporâneos nem se dão conta da profundidade dessas mudanças. A peste negra dizimou metade da população europeia, lançando o continente em uma crise que culminou com a revolta camponesa de 1381, a primeira grande trinca do sistema feudal que predominou no continente por mais de mil anos. No Brasil, epidemias como as de febre amarela, varíola e até mesmo da gripe espanhola atenuaram o domínio religioso e abriram espaço para que a ciência entrasse no cotidiano do país e na administração pública, lançando à glória nomes como Carlos Chagas e Oswaldo Cruz, Álvaro e Miguel Osório de Almeida. Médicos sanitaristas dedicados não só à apropriação da ciência pelas políticas públicas, mas também à democratização e o acesso ao conhecimento produzido dentro de instituições científicas como o Instituto Manguinhos, atual Fiocruz.

O coronavírus, certamente, será lembrado como um desses momentos na história, um surto viral que desencadeou uma hecatombe civilizacional. Marcará nossa era tanto quanto o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, a crise de 29, a ascensão de Hitler, as grandes guerras, o suicídio de Getúlio... O vírus já garantiu seu lugar entre os grandes arautos de períodos sombrios.

Já tratamos com naturalidade o colapso financeiro e social que estamos vivenciando. Talvez demore um tempo para que percebamos que todo o dinheiro em posse dos grandes países desenvolvidos não será o suficiente para manter o funcionamento da atual ordem global. Já nos foi dado um agouro do que é ter de escolher entre a sobrevivência econômica e biológica. Nenhum país sairá mais chamuscado do que os Estados Unidos da América e, por extensão, o Brasil. Donald Trump, personificação contemporânea do furor ufanista, já foi defenestrado pelo povo estadunidense e continua a espernear durante a queda, fomentando dúvidas sobre a confiabilidade da justiça norte-americana.

Destino manifesto, expecionalismo, sonho americano, Baby you were born to run na voz de Bruce Springfield. O messianismo ianque já vinha sendo, há anos, estremecido pela reascenção chinesa e pela variabilidade de fontes de entretenimento que aguam o fornecimento dos produtos culturais destinados ao público global. Wall Street e Hollywood têm o seu protagonismo, outrora incontestável, em disputa com outros centros financeiros e produtores de entretenimento. Com os galopantes números de mortes em decorrência da pandemia, as figuras de Trump e Bolsonaro, desde que assumiram o papel de chefes do executivo, além de causar desconfiança, repúdio ou medo na comunidade internacional provocam um sentimento costumeiramente reservado para chefes de estado subdesenvolvidos: Pena.

Todos os impérios nascem para um dia, morrer. Desde as grandes navegações que germinaram o capitalismo como sistema hegemônico global, já tivemos Portugal, Espanha, Países Baixos, França, Reino Unido e, desde “ontem”, os EUA, como balizadores do mundo ocidental. Os norte-americanos que saíram da segunda guerra mundial representando, ao mesmo tempo, seis por cento da população mundial e mais de cinquenta por cento da produção industrial e 93% da produção mundial de automóveis. Em 1940, o contingente militar dos Estados Unidos era menor do que os exércitos de Portugal e da Bulgária; quatro anos mais tarde o país contava com 18 milhões de homens e mulheres em fardas, o famigerado “arsenal da democracia”, como havia prometido Theodore Roosevelt.

No ápice da guerra, as fabricas de Henry Ford produziam um avião B-24 liberator a cada duas horas e durante quatro anos, os estaleiros norte-americanos lançavam ao mundo dois novos navios de guerra por dia. A fábrica da Chrysler em Detroit, sozinha, construiu mais tanques do que todo o 3º Reich. A bonança econômica transformou a imagem do cidadão de classe média urbana dos Estados Unidos em um protótipo de bem-estar social para o restante do globo, ao passo que sindicatos industriais se fortaleciam e as universidades, lentamente, ampliavam o acesso para camadas historicamente excluídas. Não raro, jovens de classes abastadas podiam atender às aulas em seus próprios carros. Longe de uma sociedade ideal, a bonança econômica sugeriu uma trégua entre o capital e o trabalhador, um princípio de reciprocidade que traria direitos trabalhistas e montantes imensuráveis de dinheiro para os grandes beneficiários da era de ouro capitalista.

Mas as liberdades individuais que acompanharam o fluxo de capital vieram com um preço. Uma nação virtualmente desmilitarizada no princípio da segunda guerra mundial, nunca tirou seu time de campo. Hoje, tropas americanas estão presentes em 150 países. Desde 1970 a China não entrou em uma guerra em território estrangeiro. Já os Estados Unidos não contemplaram sequer um dia de paz. Como notou o ex-presidente Jimmy Carter, em 242 anos de história o país viveu apenas 16 anos de trégua. Desde 2001, o país gastou mais de seis trilhões em operações militares. Nesse meio tempo, cidades emergiram na China para figurar como centros industriais que atualmente rivalizam (e virtualmente superam) com o Vale do Silício, como no caso de Shenzen. Pequena comunidade rural nos anos 70, composta por dois grupos étnicos, passou por um experimento capitalista dentro das fronteiras do regime e hoje abriga cerca de 20 milhões de pessoas, além de sediar uma bolsa de valores própria (Bolsa de Valores de Shenzen) e empresas multinacionais do porte da Huawei, DJI e ZTE. Ocupa a 14ª posição no índice global de centros financeiros do mundo. São Paulo, nesse mesmo ranking, se encontra na 80ª posição.

Enquanto “A” América se prestou a policiar a democracia global, a violência interna desestabilizou a imagem de segurança do país perante o mundo. Até abril de 2019, assassinatos com arma de fogo vitimaram quatro mil pessoas, montante similar ao de mortes de aliados registrados do início da segunda guerra mundial até o dia D, na Normandia. A base do american way of life, o núcleo familiar patriarcal, sentiu o abalo da emancipação financeira das mulheres. Já nos anos 60, quase 40% dos casamentos americanos terminariam em divórcio. Idosos passaram a conhecer os asilos, instituições majoritariamente privadas e em 2019, apenas 6% das casas americanas abrigavam avós e netos.

Estima-se que um adolescente norte-americano que completou 18 anos em 2020, já passou dois anos de sua vida em frente a alguma tela e menos tempo ao ar livre se comparados àqueles nascidos na década de 80, contribuindo para obesidade, uma epidemia que só perde em números absolutos para a depressão, em uma população que consome dois terços dos antidepressivos no mundo. As classes mais pobres, diante de um sistema de saúde dominado pela indústria farmacêutica, em muitos casos se veem obrigadas a recorrer a opiáceos que, hoje, ultrapassando os acidentes de carro, é o maior fator de mortalidade para americanos com menos de 50 anos.

Disparidades econômicas podem criar tensões disruptivas quando fábricas fecham, criando milhares de desempregados, ao passo que os industriais se enriquecem como nunca, perfilando iates e jatos. Por duas gerações, os Estados Unidos bradaram a abertura dos mercados e o país de dispôs como o grande articulador do multilateralismo. Hoje, é uma das vozes mais audíveis do protecionismo nacionalista, não raro acompanhado da xenofobia e do racismo. O slogan é claro “Make America Great Again”, um clamor nostálgico de uma era que nunca fora tão idílica quanto à narrativa pretende fazer parecer.

Os movimentos sociais dos anos 60 em diante, principiando a valorização que grupos historicamente subjugados, entraram em rota de colisão com o ocidente vernizado pelas mentes conservadoras, obrigando-os a reavaliar seus privilégios. Não é de se espantar que nas franjas do movimento conservador institucionalizado, grupos como os Proud Boys, KKK do mesmo David Duke e outros movimentos extremistas, colocaram-se como antagonistas do Black Lives Matter, quando o movimento explodiu, mais uma vez no ano passado, como reação à morte de George Floyd. Como se não bastasse os Estados Unidos de Trump, nação declaradamente mais rica da história da humanidade, ter os piores números absolutos em infectados e mortos pela COVID-19, o país teve que ouvir de líderes autocráticos como Ramzan Kadyrov, presidente da Chechênia, que estava “violando direitos básicos dos cidadãos” ou ter sua “brutalidade policial” denunciada por jornais da Coréia do Norte. Ayatollah Khamenei, supremo líder do Irã, publicou através da mídia de seu país: “A América iniciou seu processo de autodestruição”, meses depois da escalada de tensão entre Washington e Teerã, com o ataque aéreo norte-americano que causou a morte do general iraniano Soleimani.

A incapacidade chinesa de controlar a pandemia em Wuhan ficou pormenorizada diante da presença, quase sempre negativa, da principal potência global no noticiário. A conta veio. Depois de debates presidenciais estarrecedores, com discussões que pendularam entre a infantilidade e a inutilidade, duas semanas de contagens dos votos infladas por alegações inconvincentes de fraude partidas de Donald Trump, a vitória do democrata Joe Biden nos dá a oportunidade de observar como se comporta o principal representante da mais recente faceta do populismo conservador diante do principal instrumento democrático: o voto popular. Recontagem manual em estados chave, auditorias eleitorais, 60 ações em tribunais federais, convites a delegados de colégios eleitorais a desrespeitar as urnas em seu favor e mais recentemente uma ligação vazada, com a inconfundível voz do astro de televisão, pedindo para o secretario de estado da Georgia a manipulação de 11mil votos. O rol de posturas antidemocráticas do ex-presidente republicano engrossa e tende a aumentar até a posse no dia 20 de janeiro, mesmo que o derrotado nas eleições tenha se comprometido com uma transição pacífica após o atentado ao capitólio protagonizado por seus seguidores que se autodenominaram “Trump army” diversas vezes durante a invasão.

Cresce a percepção de que o expecionalismo norte-americano não passou de um mito, breve na escala do tempo em que as nações hegemônicas se mantêm no topo, uma vez que o país que definiu a forma moderna de liberdade de expressão investiu na informação massificada, abrigou os principais avanços científicos do século XX, bem como massas que vinham do mundo todo à procura do “sonho americano”. Hoje assistimos instrumentos democráticos definidos há mais um século atrás barrando as afrontas à democracia capitaneadas por um líder que antepôs a construção de um muro à ampliação de um sistema de saúde nacional, o que calharia em uma pandemia e poderia ter ao menos amenizado o tropeço que definiu sua derrocada.

O culto das liberdades individuais galvanizado pelo poder de consumo carrega a insígnia de “inocente até que se prove o contrário”, despersonalizando as responsabilidades coletivas e criando prerrogativas que contrariam o próprio senso de sociedade. Um sistema de saúde universal, educação pública de qualidade, abrangente seguridade social, terra e tetos para todos os concidadãos, são exemplos de direitos fundamentais em países entendidos como democracias plenas. Para credores do messianismo norte-americano, tais questões, caso assistidas pelo estado, não passam de indulgências socialistas que sinalizam fraquezas perante o mercado.

Circula no Canadá uma piada que diz que ser vizinho dos EUA é como viver sobre um laboratório de metanfetamina. Os canadenses, longe da perfeição, tiveram, até o dia dois de janeiros, 15 mil mortes. Com uma das maiores populações asiáticas fora do continente de origem, o país poderia ter sofrido tanto quanto seu vizinho ao sul. Metade da população de Vancouver, por exemplo, tem origem asiática e dezenas de voos aterrissam da China diariamente, mas para cada pessoa morta pelo vírus em Vancouver, 44 se foram em Massachusetts. Reflexo e opção por uma política nacional que possibilite que os filhos dos trabalhadores frequentem a mesma escola dos filhos do primeiro ministro.

Não seria o caso de elencar os feitos das socialdemocracias ocidentais ou muito menos exaltar a retomada do império chinês como postulantes ideais à liderança mundial. Conforme os chineses se mostram dispostos ao diálogo, podemos observar rachaduras tão ou mais nocivas para projetos globais, com os campos de concentração de Uighurs, investimentos militares ciclópicos e as 200 milhões de câmeras registrando cada passo de seus cidadãos. A questão parecer ser outra. Nada indica que uma era pós americana seja capitaneada por uma potência benevolente. Bem verdade, é pouco provável que conheçamos uma nação potência hegemônica despontando no cenário global. O esforço por uma ordem global multipolar passa pela percepção do despertar sonolento do que um dia foi o sonho americano. O império do indivíduo, talvez possa dar lugar ao senso de comunidade, presente no próprio discurso dos seus Pais Fundadores (Founding Fathers). O que pensariam George Washington, Benjamin Franklin, John Adams e as demais lideranças políticas fundadoras da nação se pudessem assistir os eventos deste sombrio 6 de janeiro de 2021? 

Leonardo Afonso Roberto, Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (PPG - ECCO), pertencente ao departamento de Comunicação e Artes da UFMT
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