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Sexta-feira, 29 de março de 2024

Opinião

​Virginia Woolf, precursora do feminismo

Virginia Woolf nasceu em 1882 em South Kensington, Londres, Reino Unido, em plena Era Vitoriana (relativa à Rainha Vitória, cujo reinado terminou no primeiro ano do século XX, mas deixou marcas de extremo rigor na vida britânica, sobretudo relacionadas à moral e aos costumes). A autora fez sua estreia na literatura em 1915 (aos 33 anos, portanto), com o romance “The Voyage Out”. Depois, desenvolveu notável carreira, tendo escrito uma série de obras memoráveis.

Na verdade, sua vida e mesmo suas relações pessoais mais próximas têm muito a ver com o mundo dos livros, pois era filha do editor Leslie Stephen, o qual deu-lhe uma educação esmerada, de modo que ela, muito jovem ainda, fez o seu ingresso no mundo literário – e jamais deixou de frequentá-lo, como é óbvio. E, para completar, em 1912 ela se casou com Leonard Woolf, com quem fundou, em 1917, a Hogarth Press, editora que, além de se encarregar de publicar os seus próprios livros, revelaria escritores do porte de Katherine Mansfield e T.S. Eliot.

Na literatura de língua inglesa, Virginia Woolf destaca-se como uma das escritoras de voz mais singular, com uma dimensão poética que logo salta à vista dos leitores. Mas, além do aspecto poético, suas narrativas transitam por campos de interesse e gêneros literários tão diversos como a biografia, a crônica, o conto, o ensaio, o relato de costumes. Também o caráter feminista de sua produção se faz presente. Assim, não é exagero afirmar que ela, tendo vivido em plena passagem do século XIX para o XX, tornou-se uma das precursoras do feminismo na literatura no mundo.

Nesse sentido, em seu ensaio intitulado “Um quarto que seja seu” (1929), a autora colocou a frase-síntese, que depois se tornaria célebre, traduzindo a ânsia pela liberdade e autonomia femininas:“Uma mulher tem que ter dinheiro e um quarto que seja seu se vai escrever”. De fato, algumas décadas depois, no auge do feminismo nos anos 1970, esse texto seria amplamente divulgado pelo mundo, por sua força em denunciar, sem meias palavras, as dificuldades encontradas por uma mulher que ousasse escrever num meio literário amplamente dominado por homens. E ela não apenas ousou se posicionar de igual para igual entre os homens como também desafiou a rigorosa moral vitoriana de seu tempo escrevendo, e ao mesmo tempo vivendo, o pleno amor entre mulheres, conforme lembra JorgeRemacha no artigo “Virginia Woolf, uma referência para o feminismo e a visibilidade lésbica”. É que, na vida real, era voz corrente que ela havia se apaixonado pela escritora Vita Sackville-West em 1922. Segundo relatos dos mais íntimos, as duas mantiveram uma relação secreta por alguns anos e da qual um dos frutos seria a obra “Orlando” (1928), depois reconhecida pela crítica como precursora da literatura de gênero(no enredo, Vita inspira o personagem de Orlando, uma heroína transexual que amará homens e mulheres em distintos pontos da narrativa).

Não por acaso,a obra mais conhecida da autora pelo grande público é mesmo esta: “Orlando: a biography (Orlando, uma biografia)”, que, quanto a gênero, não é uma biografia e sim um romance com tintas de autobiografia e que narra a história da vida do personagem que vive por quatrocentos anos e, em dado momento, transforma-se magicamente em mulher. Tal transformação vai provocar um estranhamento permanente aos olhos de quem lê, estendendo-se por toda a narrativa. Até nisso – no fato de o romance explorar os dois lados do personagem (homem-mulher ou mulher-homem) –, tal obra se mostra um ícone do modernismo nas letras mundiais e acentua o caráter transgressor da atuação desta que é considerada por muitos um dos grandes nomes da literatura mundial do século XX e, sem dúvida nenhuma, uma das maiores escritoras de língua inglesa de todos os tempos.

Por falar em “Orlando...”, na bibliografia da autora, essa obraé tida como a mais popular, pois, apesar de sua escrita tida por “difícil”, tornou-se mais acessível ao leitor comum. E até para coroar essa aura de popularidade do romance, seu texto foi adaptado para o cinema:o filme, que no Brasil recebeu o nome de “Orlando, a mulher imortal”, foi lançado em 1992, com Tilda Swinton no papel de Orlando e Quentin Crisp representando a Rainha Elizabeth I.

Ainda nesse mesmo sentido, o das questões de gênero na literatura da escritora britânica, é oportuno lembrar um livro dela recentemente publicado no Brasil com o seguinte título: “As mulheres devem chorar ... ou se unir contra a guerra”. Trata-se de uma versão abreviada do livro “Três Guinéus”, obra na qual, segundo o site Skoob (2019),“Woolf desenvolve o argumento de que existe uma estreita conexão entre masculinismo e militarismo, entre patriarcado e regimes ditatoriais”. Com efeito, nessa coletânea de contos, ensaios e artigos, a autora inglesa trata da íntima relação entre a guerra e a sociedade patriarcal.Nesse livro, cada texto (ou capítulo) discute um tema caro ao mundo feminino, como o da perspectiva política de entendimento do mundo, com a necessidade de compreendê-lo e de mudá-lo.

 Em “Profissões para mulheres”, que é um texto oriundo de uma palestra proferida pela autora, ela sintetiza a sua condição quase que única de mulher que trabalha fora de casa, porém esse é um trabalho intelectual e artístico, já que é escritora: "É verdade que sou mulher; é verdade que tenho empregos; mas que experiências profissionais me tive? É difícil dizer. Minha profissão é literatura; e nessa profissão há bem menos experiências disponíveis para as mulheres que em qualquer outra...".

Já em “O poder criativo das mulheres”, ela se utiliza de cartas a um interlocutor, em primeiro lugar, para refutaros argumentos machistas do outro, já que elediz não reconhecer a pressão social contra o desenvolvimento feminino, e, por outro lado, para deixar claro às mulheres de todo o mundo a necessidade urgente da luta nos mais variados campos sociais. Nesse livro, ela afirma, por exemplo: “É preciso tera atividade de nossa mente estimulada (...) mulheres que pensem, que inventem, imaginem e criem tão livremente quanto os homens, e sem medo do ridículo e da condescendência”.

Outro momento singular da bibliografia de Virginia Woolf é o livro “Cenas londrinas”, composto de seis crônicas sobre a sua cidade e que é descrito pelo Google Books como “um retrato da década de 1930 em Londres – e uma aula sobre como explorar a consciência da modernidade”. Em todas elas, destaca-se uma narradora um tanto despreocupada de suas dores íntimas, porém sempre atenta a cada detalhe humano ou da paisagem, quando de suas caminhadas pelas ruas, praças e parques, ou mesmo olhando de sua janela numa tarde qualquer. Em uma dessas crônicas, ao observar o movimento do cais do Porto Londres, ela registra: “Respirando a maresia soprada pelo vento, nada pode ser mais estimulante do que observar os navios subindo o Tâmisa (...), chegados do silêncio, do perigo e da solidão, passando por nós de volta ao abrigo”.

Personalidade humana e literária de tão múltiplas faces, assim, Virginia Woolf sentiu na pele e na alma os dramas e as crueldades de seu tempo, o que a levaria, inclusive, a lutar com graves distúrbios psicológicos, desde a sua juventude. Foi assim que, atormentada por sucessivas crises de depressão ao longo dos anos, em 1941, ela chegou ao ponto extremo do desespero e da desesperança, cometendo suicídio. Amigos da época e biógrafos, respaldados em um bilhete final que ela deixou para seu marido, Leonard Woolf, e para a irmã, Vanessa Bell, despedindo-se das pessoas que mais amara na vida, afirmam que o início da Segunda Guerra Mundial, a destruição de sua casa em Londres e a fria recepção da crítica à sua biografia (que acabara de publicar), teriam sido outros fatores a lhe fortalecer a intenção suicida.

Num relato desse episódio que ficou bastante célebre, ficou registrado, no site Skoob: “No dia 28 de março de 1941, aos 57 anos, Virginia vestiu um casaco, encheu seus bolsos de pedras e se afogou no Rio Ouse. Seu corpo foi encontrado somente três semanas mais tarde, em 18 de abril de 1941, por um grupo de crianças perto da ponte de Southease”.

Para outros estudiosos de sua vida e obra, entretanto, há outro fatorque deve ser levado na devida consideração para esse trágico desfecho de sua vida: a sua feminilidade, assim como a sua homossexualidade, reprimidas, violentadas pelo “espírito” de seu tempo.

Com toda a certeza, o legado de Virginia Woolf permanece entre nós e certamente assim há de seguir, incomodando, comovendo, deliciando os amantes da boa escrita e da literatura de primeira qualidade. Também o seu exemplo de militante de causas sociais (numa época em que a repressão era cruel e ativismo nem era palavra conhecida ainda na acepção atual) mantém-se como um farol a nos guiar, em defesa das minorias – no seu caso, especialmente contra as guerras e a favor do amor livre, consubstanciado na expressão de movimentos atuais a exemplo da causa LGBT. Afinal, como bem sintetizou o articulista e militante espanhol Jorge Remacha, no texto aqui citado, Virginia Woolf tornou-se “uma referência para o feminismo e a visibilidade lésbica” no mundo inteiro.

Em tempos de intolerância e obscurantismo como este que hoje vivemos no Brasil e em diversas partes do mundo, com efeito, mirar-se num espelho dessa grandeza é uma experiência das mais salutares e que, assim, deve ser mais e mais valorizado entre nós. Afinal, os bons e belos exemplos devem sempre frutificar, influenciando as novas gerações, para que, assim, possamos aspirar a um futuro mais digno e de bem-estar para toda a humanidade.

* ONIVALDO LUIZ CUSTÓDIO - Licenciado em Pedagogia pela Faculdade Educacional da Lapa e Licenciado em Letras e pós-graduado lato sensu em Psicopedagogia pela Faculdade Invest de Ciências e Tecnologia
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