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Quinta-feira, 25 de abril de 2024

Opinião

Movimento civil-militar de 1964: compreendê-lo ou julgá-lo?

Em 31 de março de 2021 o movimento civil-militar de 1964, que resultou na queda do Presidente da República João Goulart completa 57 anos. Escrever sobre um evento histórico ainda recente e que traz à tona velhos antagonismos é sempre complicado, porém, é mister fazê-lo. De início, o nome do acontecido já é polêmico. O leitor pode indagar o porquê de utilizamos o termo “movimento” e não golpe de Estado, contragolpe de Estado, revolução ou contrarrevolução. Dar o nome correto ao evento histórico que causou uma ruptura na ordem institucional vigente da época ainda é motivo de certa controvérsia entre historiadores e analistas. Explico. Para os militares que conduziram o movimento juntamente com lideranças civis, foi uma “autêntica revolução” (Ato Institucional nº 1). Contudo, o termo “golpe de estado” terá primazia entre historiadores e analistas, notadamente aqueles alinhados ao pensamento marxista ou que escrevem já condenando o movimento. Para esses, o adjetivo “golpe” está menos para o conceito elaborado pela ciência política do que aquele carregado de uma carga passional, o qual traz embutido o sentido de artimanha, truque, ardil, estratagema ou trama. Também, permeia no imaginário do senso comum a ideia de que “revoluções” são movimentos políticos moralmente bons e “golpes de Estado” atos reprováveis e, portanto, ruins. Senão, vejamos.

Observe que a passagem da forma de governo monarquia para república no Brasil, em 1889, foi, nos termos da ciência política, um golpe de estado civil-militar, contudo, é comemorado até hoje com um feriado nacional. A maioria celebra o movimento como evento de elevado valor histórico. A Revolução Francesa de 1789, que marcou o fim da monarquia absolutista e implantou uma república, foi seguida de um “regime de terror” dos jacobinos comandados por Robespierre que chegaram, no auge das execuções na guilhotina, executarem mil pessoas diariamente. Mesmo assim, ainda é lembrada como um movimento humanista que lutou por liberdade, igualdade e fraternidade. Outro aspecto que considero pertinente é o fato de que o evento de 31 de março de 1964, para efeitos de tempo histórico é muito recente. Ainda há pessoas vivas que presenciaram os fatos, impedindo uma análise isenta. O regime de governo que seguiu o março de 1964, qual seja, um presidencialismo de matiz autoritária, com militares à frente do Executivo e que governaram via Atos Institucionais teve o seu fim oficial em 1985, ou seja, “ontem”, historicamente. Assim, mais importante que a classificação do evento se utilizando da “taxinomia” política é saber quais os principais fatos políticos objetivos que aconteceram naquela época e, por fim, compreendê-los à luz da teoria política/sociológica. Ocorre que, nesse último aspecto, dificilmente haverá consenso e, muito provavelmente, as análises estarão contaminadas pelo anacronismo (a utilização de conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo).

Por onde começar para compreender o 31 de março de 1964? Por que o editorial do Jornal Correio da Manhã desse dia estampava o título “Basta!” (“Até que ponto o Presidente da República abusará da paciência da Nação? ...”)? E, no dia seguinte, “Fora!” (“A Nação não mais suporta a permanência do sr. João Goulart à frente do governo. ...”)? Lembremos que esse mesmo jornal defendeu a posse de João Goulart em 1961. Qual era a ordem internacional vigente nessa época? Vivia-se um mundo bipolar, a guerra fria, com os Estados Unidos (capitalista) e União Soviética (socialista) disputando a esfera de influência sobres estados-nação soberanos. Essa conjuntura internacional influenciou os acontecimentos? Com efeito, é pertinente questionar se o movimento que removeu do cargo João Goulart foi, no essencial, uma trama do governo americano, uma brutal intervenção estrangeira dos assuntos nacionais, uma manobra da CIA urdida para derrubar um governo nacionalista cujas reformas ameaçavam os interesses do capital imperialista? (embora não haja mais consistência histórica, esta narrativa ainda está presente em muitos estudos). Ou, ao contrário, havia o risco de uma revolução comunista no Brasil? Havia ingerência do governo soviético, via KGB? (a abertura dos arquivos da polícia política da Tchecoslováquia, a StB lança luz sobre esse período). Fugiria ao escopo deste artigo desvendar tais incógnitas, mas, fazer as perguntas é o primeiro passo para uma investigação histórica.

Sabemos que a história da nossa república está eivada de eventos políticos que causaram instabilidade na Nação. A Proclamação da República em novembro de 1889 não foi um movimento popular, mas de elites civis e militares. De uma ordem com, por exemplo, liberdade de expressão, passamos pelos dois primeiros governos republicanos reprimindo severamente tal direito. Até 1930, a chamada república velha alternou presidentes oriundos do eixo São Paulo – Minas Gerais (política do café com leite). Entre 1930 (com o golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís) até 1964 (com a saída de Jango) foram inúmeros momentos de crises e tensões políticas. Mesmo assim, de forma paradoxal, ouve crescimento do PIB. Como avaliou o historiador Marco Antônio Villa, era como se as crises “servissem de combustível para o motor da economia”.

Para se ter uma ideia da política nacional no período acima, lembremo-nos dos principais eventos: Revolução de 1930 já mencionada; Revolução Constitucionalista de 1932 (objetivava derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte); a Intentona Comunista de 1935 (tentativa de golpe contra o governo de Getúlio Vargas por militares, em nome da Aliança Nacional Libertadora, com apoio do Partido Comunista Brasileiro); o golpe do Estado Novo de 1937 (Getúlio Vargas, através de um golpe de estado, instituiu o Estado Novo via pronunciamento em rede de rádio, lançando um Manifesto à nação em que enfatizava "reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país"); o fracassado golpe integralista de 1938; a queda do estado-novo varguista em 1945; em agosto de 1954 tivemos a crise política que levou a suicídio de Vargas; em 1955 houve a “novembrada” (movimento em que o Marechal Lott garante a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e João Goulart), nesse mês o país conviveu com três presidentes da República: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos; na presidência de Juscelino houveram duas tentativas de golpe militar: as revoltas de Jacareacanga e Aragarças; em agosto de 1961, após sete meses de governo, o Presidente Jânio Quadros renuncia, abrindo a caixa de pandora que levaria ao 31 de março de 1964. Como se vê, não houve monotonia na vida política do país nesses trinta e quatro anos.

Em todos os eventos citados podemos identificar um elemento comum, sempre presente nas “soluções” dos conflitos: os militares das Forças Armadas. Nesse ponto, acredito ser importante fazer uma pequena digressão histórica para uma incipiente compreensão desse fenômeno. A participação do estamento militar no poder político na qualidade de reserva moral para restabelecimento da ordem e dos costumes, remonta, em verdade, após os eventos da Revolução Francesa. Acredito que esse aspecto é pouco difundido no Brasil, juntamente com a influência do positivismo na classe militar desde o Império. Para o historiador David A. Bell (“Primeira Guerra Total”, 2012) os líderes militares das guerras revolucionárias e napoleônicas buscavam explicitamente “desfazer os vínculos dos recrutas com a vida civil e lhes incutir um etos militar”. Essa separação de domínio é a causa do fenômeno que ficou conhecido como “militarismo”. Bell pontua que os militaristas acreditam na superioridade moral das Forças Armadas sobre a sociedade civil, ou seja, as primeiras são louvadas por sua disciplina, sua capacidade de autossacrifício e de superar adversidades; a segunda é desprezada como fraca, corrupta e absorta. Essa nova forma de pensar o elemento militar produziu, na França Revolucionária, o primeiro golpe de Estado dos tempos modernos, o golpe de Estado de 18 de brumário, que marcou o início da era do governo napoleônico na França. Nesse contexto, vejam que, conforme pesquisa do Instituto Datafolha de 2019, as Forças Armadas seguem como a instituição mais confiável para os brasileiros, com certa vantagem sobre as demais. Uma parcela de 45% dos brasileiros com 16 anos ou mais confia muito nas Forças Armadas, e 35% confiam um pouco. Com efeito, o papel dos militares na democracia nacional ainda é um fértil campo de estudos.

Conforme destacamos, para compreender março de 1964 é preciso voltar alguns anos antes desta data. Para os propósitos deste artigo, recuaremos até 1961 com a posse de Jânio Quadros (1917/1992) para Presidente da República com mandato que se estenderia até 1965. No período de 1945 a 1964, em todas as eleições presidenciais haviam candidatos militares [em 1945 foram dois: o cuiabano Gen Dutra (1883/1974) e o Brigadeiro Eduardo Gomes (1896/1981)]. Tendo como bandeira política o combate à corrupção (qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência) Jânio Quadros (coligação PTN / UDN / PR / PL / PDC) venceu o candidato governista Marechal Lott (coligação PSD / PTB / PST / PSB / PRT), cuja chapa tinha como vice João Goulart (PTB). Interessante observar que, nessa época, o vice era eleito com votação separada. Jânio encarnava o típico líder político populista: queria parecer como o povo. Usava um vocabulário simples, os cabelos despenteados e o paletó cheio de caspa; aparecia nos palanques de seus discursos devorando sanduíche de mortadela; declarava-se católico, anticomunista, a favor da família e da moralização da sociedade.

Eleito, em seu curto mandato de sete meses, estabeleceu uma política que desagradou amplos setores. Mas foi na política externa que acirrou os ânimos da oposição: restabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética e, com um gesto carregado de simbolismo, condecorou pessoalmente o guerrilheiro cubano Ernesto “Che” Guevara e o cosmonauta russo Yuri Gagarin, além de receber no Brasil o ditador cubano Fidel Castro. O leitor pode imaginar como essa política externa desagradou o governo norte-americano ao mesmo tempo em que era também criticado pelo partido de sua base, a UDN, das elites e da ala militar à direita do espectro político (sim, porque havia nas Forças Armadas governistas, conspiradores legalistas e radicais e até rebeldes de esquerda).

Em 25 de agosto de 1961, dia do Soldado, Jânio Quadros renuncia ao mandato. Por que o fez? Em sua carta de renúncia sustentou que “forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam” ao tempo que também faz uma referência às Forças Armadas “cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade”. O verdadeiro motivo da renúncia, portanto, não fica claro. Teorias subsequentes irão advogar que Jânio tentou um “autogolpe”, ou seja, apostou que sua renúncia não seria aceita e voltaria “nos braços do povo”. Seja lá como for, falhou miseravelmente. A única coisa que realmente conseguiu foi entregar a Nação a uma crise política que culminou com um General na Presidência em 11/04/1964.




No dia em Jânio renunciou, Jango estava em visita oficial à China. E aqui começam os problemas. Os ministros militares se opuseram à posse dele. Seu cunhado, Leonel Brizola, então Governador do Rio Grande do Sul, inicia uma “campanha pela legalidade”, cujo objetivo era garantir a posse para Jango, nos termos da constituição vigente, a de 1946. Por duas semanas o país entrou em extrema tensão. Não havia consenso entre as lideranças militares. Brizola defendia o uso de armas e tinha no Comandante do 3º Exército, um aliado. Até mesmo o Marechal Lott, adversário de Jânio na eleição de 1960, pediu pelo cumprimento da constituição: “Sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação”, disse em pronunciamento às Forças Armadas. Quase à beira de uma “guerra civil”, surgiu a “solução parlamentarista”. Às pressas, uma emenda para mudar o sistema de governo para o parlamentarismo foi aprovada no Congresso, com previsão de um plebiscito em 1965. Jango viajou para a China como Vice-Presidente de uma república presidencialista e retornou Presidente de uma república parlamentarista, perdendo poderes. Não era mais Chefe de Governo, e sim Chefe de Estado. Aceitou a situação, mas não demorou a manobrar ações para restaurar o presidencialismo. O que viria a ocorrer, via plebiscito, adiantado para 06/01/1963.




Com a volta do sistema presidencialista, Jango podia ser o protagonista da sua principal plataforma de governo: aprovar as tais “reformas de base”. Jango acreditava no intervencionismo estatal na economia, mas não obtinha êxito em sua política econômica. O problema da reforma agrária era um tema caro a Jango e o epicentro de profundas divisões no Congresso. Na área militar, procurou construir o que foi conhecido por “dispositivo militar”, ou seja, um salvo conduto contra eventual golpe militar para derrubá-lo. É fato que Jango acalentava o sonho da reeleição, o que não tinha previsão constitucional. As Forças Armadas enfrentavam problemas de indisciplina na tropa, principalmente na Marinha e Aeronáutica. Em 12/09/1963, cerca de 600 sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha rebelaram-se em Brasília. Essa rebelião dos sargentos foi resultado da insatisfação que surgiu entre os sargentos depois que eles foram proibidos pelo STF de concorrer a cargos eleitorais em 1962.Ocuparam prédios públicos, cortaram todas as comunicações com a capital e detiveram oficiais, o presidente do STF e o presidente interino da Câmara. Aproveitando o evento, Carlos Lacerda, então Governador da Guanabara fazia forte oposição ao governo Jango. Aproveitando o evento acima, deu entrevista a um jornal americano dizendo que as Forças Armadas estavam esperando o momento adequado para “derrubar o governo”. Os ministros militares defenderam o governo. Aqui é importante destacar uma ação de Jango que contribuiria para aumentar a tensão. Jango acalentava a ideia de propor estado de sítio. Em 04 de outubro de 1963 chegou a enviar o pedido ao Congresso Nacional. Com um eventual estado de exceção instalado, Jango poderia eliminar seus principais opositores políticos: o Governador de São Paulo, Ademar de Barros; de Minas Gerais, Magalhães Pinto e da Guanabara, Carlos Lacerda; também entraria no “facão”, para dar conotação de isenção, o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes (de esquerda). A repercussão foi péssima e Jango conseguiu unir esquerda e direita contra seu Governo.

Na análise do historiador Marco Antonio Villa, o estado de sítio pretendido por Jango e exposto em várias reuniões, seria o “primeiro passo para um golpe de Estado, como uma repetição de 1937, apenas substituindo a linguagem fascista pela esquerdista, ambas autoritárias”. A manobra fracassou e, isolado, Jango foi obrigado a pedir a retirada da medida três dias depois. O governo enfraquecia a olhos vistos!

Assim, o país entra em 1964 em estado de tensão e clima de golpe pairando de diversos setores. Os indicadores econômicos eram péssimos. Jango não conseguia avançar com suas reformas de base, ou seja, armava-se a “tempestade perfeita” para uma ruptura da ordem, que poderia originar-se à esquerda ou à direita. As forças políticas discutiam e conspiravam. Nas palavras de Villa a “democracia era golpeada à esquerda e à direita”. A verdade era que Jango não tinha muitas opções. Renunciar e entregar o poder à direita? Tentar um golpe aos moldes de Getúlio? Acabou optando por lançar-se ao povo, via discursos e retórica. Assim, com as ruas, almejava pressionar o Congresso para aprovar as tais reformas de base naquilo que ficou conhecido “reforma na lei ou na marra”. O ano de 1963 encerra-se com péssimos indicadores econômicos: queda do PIB de 6,6% em 1962 para 0,6% em 1963; inflação chegou a 80%; a reservar internacionais caíram ainda mais, chegando a apenas US$ 215 milhões, próximo a 20% do valor total das importações no mesmo ano.

O derradeiro ano de 1964 inicia para Jango com as tensões políticas em nível máximo. Com a estratégia assumida de ir em direção ao povo para pressionar o Congresso por reformas, no dia 13/03/1964, Jango organizou um grande comício na estação ferroviária da Central do Brasil do Rio de Janeiro. Cerca de 150 mil pessoas, no horário do rush, compareceram ao evento. Jango pretendia chegar após a fala de Brizola, mas acabou por ouvi-lo. Este fez um discurso forte. Atacou o Congresso. Finalizou, colocando Jango em uma “saia justa” ao exigir que ele se decidisse por “caminhar conosco e terá o povo ao seu lado. E quem tem o povo ao seu lado, não tem o que temer”. Ao ter a palavra o que anunciou Jango? Com um discurso até certo ponto moderado em comparação a Brizola, defendeu a encampação de refinarias de petróleo privadas (assinaria um Decreto com esta pauta) e a possibilidade de desapropriar terras às margens de estradas e açudes; atacou a constituição vigente; defendeu a reforma agrária e principalmente, colocou o Congresso em oposição à multidão que o assistia. As cartas estavam na mesa. Jango blefava? O PCB estava entusiasmadíssimo com a possibilidade de ser o Brasil o “segundo país no caminho glorioso da revolução socialista americana”.

A resposta das ruas veio seis dias depois. Em 19/03/1964 uma grande passeata em São Paulo com o nome de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” reuniu pelo menos 500 mil pessoas. Em 25/03/1964, quase dois mil marinheiros e fuzileiros navais comemoraram o aniversário de sua associação, ilegal, por ter caráter sindical. O ministro da Marinha enviou cem fuzileiros para prendê-los. Em vez disso, aderiram à rebelião. O Exército interveio e prendeu os líderes, mas Jango os anistiou. Este ato trouxe profundas consequências para o apoio militar ao seu governo, posto que, independente da ideologia, entre o alto comando das Forças Armadas, a manutenção da hierarquia e disciplina é inegociável.

Não satisfeito em cometer erros políticos, em 30/03/1964, portanto, um dia antes do Gen Olympio Mourão colocar seus tanques na estrada, João Goulart compareceu a uma reunião do Automóvel Clube no Rio de Janeiro para comemorar o 40º aniversário da Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar. Jango havia sido convidado muito antes e foi aconselhado por vários assessores a não comparecer. Foi estimulado a ir conversar com os sargentos pelo Chefe do seu “dispositivo militar”, o Gen Assis Brasil. Jango discursou e radicalizou em cerimônia transmitida pelo rádio e televisão. Se sabia ou não, o fato era que Jango tinha acabado de assinar sua queda do governo.

Na manhã seguinte, 31/03/194, disposto a entrar para a história, o Gen Olympio Mourão Filho comandou as tropas do Exército de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, desencadeando o “golpe militar”. Jango descobriu tarde demais que o seu “dispositivo militar” sob responsabilidade do Gen Assis Brasil não existia. Fez as malas e foi para Brasília. Após cinco horas na capital e a leitura de um manifesto pela Rádio Nacional, deslocou-se para Porto Alegre, chegando na madrugada do dia 02/04/1964. Nessa mesma madrugada, o Presidente do Congresso Nacional Auro de Moura Andrade, em uma sessão conturbada, declara a vacância do cargo de Presidente da República, embora, tecnicamente, Jango ainda estivesse no Brasil. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, é interinamente empossado na Presidência pelo Congresso Nacional.

Em 09/04/1964, é baixado o Ato Institucional nº 1 (AI-1) pela Junta Militar composta pelos Ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Ele dava ao governo militar o poder de alterar a constituição, cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos por dez anos e demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. Determinava ainda eleição indireta para a presidência da República no dia 11 de abril de 1964, estipulando que fosse terminado o mandato do presidente em 31 de janeiro de 1966, quando expiraria a vigência do ato.

Em 11/04/1964, o General Humberto de Alencar Castello Branco é eleito Presidente pelo Congresso Nacional, com 361 votos (em tese para completar o mandato de Jânio Quadros / João Goulart, que iria até o final de 1965). Em 15/04/1964, Castello Branco toma posse, inaugurando o ciclo de presidentes militares e em agosto de 1964, seu mandato é estendido até 15/03/1967, não havendo, portanto, as eleições diretas em 1965, frustrando os planos do PSD que apostava na vota de Juscelino Kubitschek.

Procuramos esboçar os principais eventos que antecederam a queda de João Goulart e o início do governo militar que estender-se-ia até 1985. Dei como título a este artigo “movimento cívico-militar de 1964: compreendê-lo ou julgá-lo?”. Penso que este não é possível sem aquele. Aceitar ou rejeitar moralmente os eventos históricos é da natureza humana. Não há contexto que justifique os genocídios, a escravidão e a morte de civis inocentes nos embates militares entre nações. Contudo, as disputas pelo poder político revestem-se de extrema complexidade. A rigor, a política emerge das organizações sociais humanas e por ela é conduzida. A internalização do pensamento marxista na organização dos movimentos revolucionários do século XX trouxe profunda divisão nas visões políticas de como deve se estruturar as sociedades. As democracias liberais tem que conviver com as visões opostas sobre economia e organização das instituições, bem como o papel e o tamanho do Estado. As soluções democráticas para os problemas que afligem as nações não são imediatas, porquanto são frutos de discussões intermináveis entre as visões de mundo que convivem juntas. Talvez venha daí a tentação constante nas jovens democracias pela solução autoritária e imposição de medidas vistas como ideais, normalmente oriundas de mentes populistas. O Brasil não ficou fora dessas discussões. O pós-guerra (1945) com a divisão do mundo em dois sistemas que competiam pela primazia do modelo de organização social estabeleceu o pano de fundo dos acontecimentos político-social do Brasil a partir do Governo Dutra até 1985. A dissolução do estado soviético em 1991 trouxe uma nova ordem mundial e novos atores internacionais, sobretudo com a ascensão da China.

É sempre tentador após nos inteirarmos de algum evento histórico, perguntar “e se?”. E se Jânio quadros não tivesse renunciado? E se os Militares não houvessem impedido a posse de Jango? E se Jango houvesse sido mais habilidoso politicamente e conduzido seu mandato sem traumas até 1965? E se o General Mourão não houvesse antecipado o movimento? E se Jango houvesse resistido militarmente? E se os militares houvessem devolvido o governo nas eleições de 1965? Simplesmente não sabemos. No máximo podemos especular. O fato é que a flecha lançada não volta mais. Assim é a história. Devemos aprender com os erros para não repeti-los. Contudo, não é fácil reconhece-los. Exige honestidade intelectual.

Para os defensores do movimento de 1964, o Brasil foi salvo de uma revolução socialista aos moldes de Cuba. O regime militar fez progressos na área econômica e social. Para seus detratores, não havia possibilidade para tal e o golpe foi desnecessário, produzindo um atraso civilizacional de 21 anos, perseguições políticas e mortes. Particularmente, defendo que o movimento de 31 de março de 1964 representou o ápice de uma tragédia anunciada. O Brasil não conseguiu ao longo da sua história republicana construir e fortalecer instituições que garantissem estabilidade política e um ambiente democrático que permitisse a convivência das forças conflituosas. Some-se a isso a ausência de uma convergência entre as diversas forças políticas em torno de objetivos nacionais permanentes, como por exemplo, a própria democracia, soberania nacional e o livre mercado como o modelo gerador de riqueza. Essa ausência impediu que a Nação enriquecesse e ficasse menos dependente de comodities agrícolas.

Desde o início estivemos embevecidos pela crença no governo como a única forma de condução do país. Jamais adotamos a economia de mercado como um valor inegociável. Desenvolvemos um gosto por líderes populistas e caudilhos salvadores da pátria. Acreditamos em quem dizia ser possível dividir um bolo antes de fazê-lo. E, assim, de crise em crise, ora liderados pelo setor militar politizado e munido do pensamento positivista, ora pelos “iluminados” marxistas/socialistas/comunistas, chegamos até o evento acima narrado.

Os próprios militares que assumiram o governo em 1964 também o distensionaram a partir de 1974 com o governo Ernesto Geisel, culminando com a anistia ampla, geral e irrestrita em 1979 e a revogação do AI-5. Figueiredo, último General Presidente, entregou o poder a um civil em 1985. A partir de então, as Forças Armadas estão silentes politicamente e dedicadas às suas atribuições constitucionais. Seus integrantes, quando participam da arena política, o fazem em conformidade com as regras vigentes.









Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)






































 
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