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Opinião

A Laranja Mecânica Brasileira

Marcelo Ferraz

A esperança de que um salvador da pátria – militar, pai de família, religioso, com experiência em guerrilha contra os "petistas-comunistas", saudosista da ditadura, protetor dos direitos da maioria – pudesse mudar o país, da noite para o dia, brilhava intensamente nos olhos e no coração dos eleitores de Bolsonaro.

Como se ele fosse o próprio "Messias", em carne e osso, representando a vacina da moralidade que o povo "bastardo" e "degenerado" desta Nação estava necessitando. Isso porque, segundo a visão dos bolsonaristas, os "socialistas" da "esquerdopata" colocaram o país inteiro em um ciclo de libertinagem e corrupção nas últimas décadas que permaneceram no poder.

Desta forma, o fake News (da idiotice populista) alimentou o medo da população – de se ter um governo depravado e imoral controlando o país novamente. Dito e feito, assim o paladino da moralidade absorveu tudo isso em seu discurso e abriu fogo com sua metralhadora voraz; para criminalizar todas as condutas fora do padrão comportamental da direita conservadora, inclusive, incluindo gente de bem e honesta no mesmo balaio de gato da criminalidade atuante no país.

Para clarificar esta analogia e contextualizá-la melhor, será necessário contar um pouco do filme Laranja Mecânica. O filme foi baseado no romance escrito em 1962 por Anthony Burgess, que por sua vez, foi adaptado para o cinema por um roteiro escrito e dirigido por Stanley Kubrick. A produção do clássico emprega imagens violentas e perturbadoras para comentar sobre a psiquiatria, delinquência juvenil, gangues de jovens, e outros assuntos sociais, políticos e econômicos em uma distópica Grã-Bretanha num futuro próximo.

Deste modo, nesse futuro próximo, as gangues de delinquentes se viciam nas ruas por mero prazer, e Alex DeLarge (McDowell) é um deles. Sua quadrilha se diverte espancando, estuprando e matando pessoas enquanto ouvem música clássica. Um dia ele é preso e passa por um rígido e controverso sistema de reabilitação chamado "Ludovico".  

Na prisão e, depois de cumprir dois dos 14 anos de sua sentença, vendo como única chance de sair de lá, Alex torna-se voluntário dessa terapia para aversão experimental. Desta maneira, ele submete-se a uma terrível "cura" behaviorista. Então, é dada uma droga para Alex, amarram-no a uma cadeira e, com os olhos mantidos abertos à força, obrigam-no a ver filmes violentos e depravados enquanto ouve a Nona Sinfonia de Beethoven. Após duas semanas dessa tortura, um simples pensamento (sobre sexo ou violência) provoca nele convulsões terríveis.  

Depois da terapia de aversão, Alex se comporta como "um bom membro da sociedade", mas não por escolha. Sua bondade é involuntária, ele tornou-se o que se chama de "Laranja Mecânica" - orgânico do lado de fora, mas mecânico por dentro.

Na prisão, depois de testemunhar a técnica em ação em Alex, o capelão critica-a como falsa, argumentando que a verdadeira bondade deve vir de dentro. Isso leva ao tema do abuso das liberdades - pessoal, governamental, civil - por usar Alex, com duas forças políticas em conflito (o governo e os dissidentes) que manipulam Alex para seus fins puramente políticos. Ou seja, a história em si retrata criticamente os partidos "conservador" e "liberal" como iguais, para a utilização de Alex como um meio para seus fins políticos.

Assim como o protagonista do filme "Laranja Mecânica" precisava de um tratamento intensivo de reabilitação – através da controversa técnica de condicionamento psicológico – a psicose coletiva dos eleitores de Bolsonaro também sonhava que o país (e todas as etnias que vivem dentro dele) também necessitava, após ter sido criado no seio da "tropicália transviada e alternativa" das últimas décadas, de uma terapia de choque urgente para reorganizar, mesmo que à força: a mentalidade, os costumes, enfim, a cultura comportamental do povo brasileiro.   

Porém seus seguidores da direita conservadora não perceberam que, por trás daquele discurso populista de pseudopatriota moralista, havia uma verdadeira enxurrada de "laranjas podres" prestes a abocanhar os cargos ministeriais, sendo que a maioria não tinha a mínima noção do que iria fazer lá. Mas, sabiam que, uma vez nomeados, muitos interesses privados e financeiros seriam cobrados. E assim, mais uma vez, nos ministérios, o perfil técnico deu lugar para o político – representando os interesses econômicos das bancadas no Congresso Nacional. Um tipo de fisiologismo partidário institucionalizado pelo próprio presidente.           

E assim começou o filme, que seria cômico se não fosse trágico, mas agora da realidade sofrida brasileira, desencadeado por uma sequência de atos, informações e posicionamentos desencontrados, transformando a República em uma locomotiva desgovernada e na iminência de cair em um precipício ainda mais caótico do que o deixado pela irresponsabilidade fiscal dos governos petistas.  

Antes mesmo de completar um mês de governo, notícias traziam o cheiro azedo das laranjas pobres, isto é, ministros supostamente envolvidos em falcatruas. Fora as irregularidades supostamente cometidas antes de começar o mandato, que vieram à tona, ainda tem a bomba atômica inexplicável do filho do presidente, Flávio Bolsonaro (PSL), que ainda nem explodiu. Por fim, para fechar a cena, ainda tem o gran finale ou excelente final: a crise do PSL sobre as candidaturas laranjas nas eleições de 2018, que por sua vez, supostamente, movimentaram milhões em verbas públicas do partido.

Contudo, voltando à analogia da Laranja Mecânica, resta saber se a terapia comportamental da moral e dos bons costumes imposta ao povo (pelos eleitores de Bolsonaro) irá curá-lo de uma cegueira psicossomática – de não conseguir enxergar a demagogia, a hipocrisia e a falta de carácter dos atuais políticos populistas brasileiros.


Marcelo Ferraz é jornalista e escritor.         
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