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Opinião

MP da Liberdade Econômica, autonomia e racionalidade: uma nova diretriz para a boa-fé contratual

Luis Felipe Silveira

No direito contratual, a boa-fé – ao menos em sua conotação objetiva – se encontra apoiada, essencialmente, em três dispositivos do Código Civil que a literatura especializada é quase unanime em afirmar exercer três funções: interpretativa (art. 113), de balizador para o exercício regular de direitos contratuais (art. 187) e geradora de deveres laterais ou acessórios de conduta (art. 422). É óbvio que, em alguma proporção, essas aplicabilidades acabam por se entrelaçar, na medida em que, eventualmente, a interpretação que, conforme a boa-fé, se vier a conferir a uma dada cláusula contratual poderá resultar, na prática, ou num incremento de uma dada conduta prevista contratualmente ou, por outro lado, na limitação do seu alcance.
 
A concreção do princípio da boa-fé é, no mais das vezes, direcionada ao atendimento da justa expectativa da parte contratante e é sempre embalada ou baseada em um dever não escrito, mas igualmente exigível, de colaboração ou cooperação. Trata-se, portanto, de um imperativo ético. O ponto é saber até que ponto se poderia exigir tal comprometimento – o que implica, consequentemente, em se aferir a medida da justa expectativa da outra parte contratante.
 
Clóvis do Couto e Silva, em sua obra “A obrigação como processo”, cita o exemplo de alguém que contratado para expor um anúncio para fins de propaganda, o faz em local de pouco tráfego – concluindo, então, que, nesse caso, embora o contrato fosse omisso quanto a localidade onde o anúncio devesse ser exposto, a obrigação não teria sido cumprida. A pergunta que se põe, então, é: isso seria verdadeiro em todos os casos? Em um artigo intitulado “Is Breach of Contract Immoral?” (A quebra de contrato é imoral? Em tradução literal), Steven Shavell discute, com base em critérios econômicos, se seria razoável, por exemplo, exigir de um limpador de neve que removesse qualquer quantidade acumulada nas ruas, dada a estrutura de custos sobre o qual o contrato de serviços se sustenta – e, neste caso, a conclusão é que nem sempre seria possível dizer que a remoção da neve era a conduta razoavelmente esperada naquele caso.
 
A reflexão suscitada nesse segundo exemplo parece estar sintonizada com a redação sugerida ao art. 113, §1º, V, do Código Civil, no relatório final produzido pela Comissão Especial responsável pela análise da MP da Liberdade Econômica na Câmara dos Deputados. Segundo o referido dispositivo, na interpretação de negócios jurídicos, o resultado do processo cognitivo deve “corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.
 
É uma mudança de rumo. O processo interpretativo de cláusulas contratuais, para além de se basear unicamente nos usos do local e em um parâmetro de comportamento abstratamente posto (aquele que correspondesse à justa expectativa), também deverá levar em conta, afinal, o que as partes teriam efetivamente escolhido, considerada a forma como o negócio se encontra estruturado e as possíveis escolhas racionais das partes naquele contexto, em específico.
 
É, como se vê, uma reafirmação da autonomia como valor – justamente aquele que, segundo a massacrante maioria da literatura jurídica, teria sido relativizado no direito contratual pelo princípio da boa-fé. A ideia de se complementar disposições contratuais baseado nas escolhas racionais que as próprias partes teriam realizado naquele contexto, seja por meio do recurso à interpretação (que é o que se discute nesse momento), seja por meio do processo de gap filling (preenchimento de lacunas), impõe, inquestionavelmente, uma individualização do processo – quase uma moralização da ideia de contrato, no sentido desenvolvido na década de 1980, por Charles Fried, em sua obra “Contract as Promise” (em tradução literal Contrato como Promessa).
 
Desse modo, uma interpretação contratual da qual se tire, no final do processo cognitivo, uma obrigação complementar de uma dada parte de se comportar de um certo modo baseado em um dever de cooperação e destinado a atender à justa expectativa da outra parte, deverá passar, inevitavelmente, por uma verificação ou validação: essa seria uma escolha que as partes teriam feito, considerando o contexto, a alocação de riscos pactuada e o fato de as partes serem agentes econômicos racionais (e não filantropos ou meros benfeitores desinteressados)? Esse é um exercício que tende a reforçar a segurança e a eficiência econômica nas relações contratuais.
 
 
Luis Felipe Silveira é sócio e head da área contratual do escritório empresarial Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
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