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Opinião

Redação do ENEM-2019 e retrato da leitura no Brasil

Julio Cezar Rodrigues

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) fez a divulgação do resultado do ENEM-2019. Para surpresa de ninguém, considerando-se a performance dos candidatos no ENEM-2018, apenas 53 candidatos obtiveram a nota máxima (1.000 pontos) na prova de redação (em 2018 foram 55 candidatos), em um universo de 3,9 milhões que compareceram às provas. Em termos percentuais, apenas 0,0013% conseguiram a pontuação máxima. Na outra ponta, 143 mil participantes tiraram nota zero. Destes, 56.945 deixaram a prova de redação em branco, ou seja, não foram capazes de dissertar uma linha sequer sobre a “democratização do acesso ao cinema no Brasil”. A nota média foi de 592,9 pontos, sendo este valor maior do que o observado em 2018 (522,8 pontos). No geral, as notas médias caíram em todas as provas objetivas.

Aos especialistas em educação fica o desafio de extrair dos números apresentados um diagnóstico que revele as causas do fenômeno e subsidiem os “remédios” a serem ministrados para melhoria deste quadro. Não sendo tal autoridade, ousarei apenas fazer uma inferência entre uma pesquisa sobre leitura e o resultado do enem-2019 acima apresentado. Trata-se da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, realizado de quatro em quatro anos pelo Instituto Pró-Livros. Os dados foram revelados em 2016 e para este ano, nova exploração está programada.

A pesquisa apontou que o número de livros lidos em um ano pelos brasileiros passou de 4 em 2011 para 4,96 livros em 2015. Contudo, foram apenas 2 livros inteiros lidos em 2011 e 2,43 em 2015. Quando perguntados por que não leram nos últimos três meses anteriores à pesquisa 73% responderam que não tiveram tempo, não gostam ou não tem paciência para leitura. 74% dos entrevistados ainda afirmaram não haverem adquirido nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa (disponível em https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/09/jovens-leem-mais-no-brasil-mas-habito-de-leitura-diminui-com-a-idade.shtml. Acessado em 21/01/2020). Estes números deixam evidente aquilo que nosso senso comum alerta: nós, brasileiros, não cultivamos o hábito da leitura.

Para mim, pelo menos em uma análise preliminar, existe uma correlação entre esses eventos. A leitura habitual, sobretudo literatura brasileira e estrangeira, reveste-se de suporte teórico significativo para que o aluno e candidato elabore uma redação com conteúdo, ou seja, desenvolva argumentos e faça uma proposta interventiva relevante, para ficar em apenas duas das cinco competências exigidas pelo ENEM. Claro, o desafio é despertar nos jovens (e nos adultos também) o gosto e hábito pela leitura. Isso em uma época em que os estímulos audiovisuais atingiram um patamar jamais visto na história humana. O uso intensivo dos smartphones, praticamente uma extensão dos corpos, tem abalado (segundo alguns especialistas) a capacidade de concentração, por conseguinte, é cada vez mais difícil que um jovem permaneça uma ou duas horas seguidas em frente às páginas de um livro físico ou mesmo digital.

Paradoxalmente, o mundo nunca propiciou tanta informação ao alcance de um clique e, ao mesmo tempo, esse fato não tem gerado, necessariamente, conhecimento. Ainda assim, vivemos melhor materialmente e não se está aqui a querer despertar, pura e simplesmente, uma memória saudosista de tempos idos. Historicamente, a relação do sapiens com a leitura nunca foi prodigiosa. Basta pensar que desenvolvemos a escrita há pouco mais de 4500 ou cinco mil anos e a popularização dos livros deu-se apenas com a invenção da imprensa há pouco mais de 500 anos (inventada por Gutemberg na década de 1.430). O hábito da leitura, definitivamente não está em nosso DNA, mas a curiosidade e vontade de descobrir e entender como o mundo funciona e suas razões, acredito que faz parte da nossa natureza. É aqui que devemos concentrar os esforços, notadamente através dos núcleos familiares. Pais que lêem, estão mais propensos a despertar tal hábito em seus filhos.

No romance distópico “Fahrenheit 451”, publicado em 1953, Ray Bradbury descreve uma sociedade com uma forma muito sutil de totalitarismo. O governo proibiu todo e qualquer livro ou tipo de leitura, prevendo que o povo possa ficar instruído e se rebelar contra o status quo. Tudo é controlado e as pessoas só têm conhecimento dos fatos por aparelhos de TVs instalados em suas casas ou em praças ao ar livre. A leitura deixou de ser meio para aquisição de conhecimento crítico e tornou-se tão instrumental quanto a vida dos cidadãos, suficiente apenas para que saibam ler manuais e operar aparelhos. Os Bombeiros receberam uma nova função. Não mais trabalham na extinção de incêndios, mas sim, na incineração de livros. Contudo, o que mais me chamou a atenção neste livro é que o governo não teve resistência para impor a proibição aos livros. As pessoas, gradativamente foram perdendo o interesse pela leitura dos livros. Assim, quando a restrição virou uma lei, praticamente não houveram protestos.

Olhado para a História, verificamos que já queimamos bibliotecas, a igreja proibiu a leitura de centenas de determinadas obras e livros foram incinerados no nazismo e stalinismo. Talvez, nunca mais venhamos a efetivar condutas tão grotescas como essas. Todavia, será que não caminhamos para uma indiferença ou desinteresse pelos livros? Tal como na sociedade distópica de “Fahrenheit 451”? Assim como qualquer atividade exercida pelo ser humano, fazer exercícios físicos, tocar um instrumento musical ou desenvolver habilidades específicas, a leitura, igualmente, demanda uma rotina, que, transformada em hábito, incorpora e torna-se inseparável da vida do indivíduo. Observe que lendo apenas vinte página por dia, você terá, ao final de um ano, lido o equivalente a vinte e nove livros de 250 páginas cada. Isto é sete vezes mais do que a média apontada pela pesquisa. Alguém não teria pelo menos 30 minutos do dia para dedicar-se a meras vinte páginas?

Enfim, a baixa proficiência em redação pelos nossos jovens egressos do ensino básico tem, entre outras causas, a deficiência na leitura. Trata-se de um problema complexo e está nas raízes falida educação pública nacional. Em sua obra “Como ler livros”, o filósofo americano Mortimer Adler salienta que “ler, assim como uma descoberta, é aprender com um professor que está ausente”. Assim, é preciso aprender também a ler.
 


Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)
 
 
 
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