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Opinião

O resgate de 563 trabalhadores em MT: um retrato moderno do trabalho escravo

Carla Reita Faria Leal e Gabriela Andrade Nogueira Gonçalves

  Na última semana, Mato Grosso esteve novamente em evidência nos noticiários nacionais em razão dos desdobramentos de uma ação da Inspeçao do Trabalho, que foi desencadeada a partir do registro de um incêndio em alojamentos de trabalhadores e culminou em uma das maiores operações de resgate contra o trabalho em condição análoga à escravidão de 2025.

No município de Porto Alegre do Norte (MT), situado cerca de 1000 quilômetros de Cuiabá/MT, 563 trabalhadores foram encontrados em condições degradantes em um canteiro de obras de uma usina de etanol de milho da empresa 3Tentos Agroindustrial, obra essa executada pela Construtora TAO.

Os auditores fiscais do trabalho constataram o fornecimento de alojamentos precários, superlotados, sem ventilação adequada, com banheiros sujos e constante falta de água e de energia — elementos que configuram clara violação dos direitos trabalhistas e humanos. Foi detectado também a prática de jornadas exaustivas e, em alguns casos, descontos indevidos referentes a despesas com passagens e alimentação para o deslocamento dos trabalhadores de suas cidades até o local da obra, com nítida transferência a estes do risco da atividade econômica. Houve, ainda, relatos de fornecimento de alimentação inadequada, com larvas e moscas na comida.

Além disso, a ação identificou fortes indícios de servidão por dívida e até possível tráfico de pessoas, especialmente pelo recrutamento de trabalhadores nas regiões Norte e Nordeste do país com promessas de ganhos elevados, que posteriormente não se concretizavam, com anúncios em grupos de WhatsApp e carros de som.

A operação fiscal, iniciada em 28 de julho e oficializada em 6 de agosto, contou com a participação de integrantes do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal e do Projeto Ação Integrada (PAI/MT), que é um projeto que atende a resgatados.

Importante destacar que o empreendimento que estava sendo construído contava com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e se inseria dentro das iniciativas para combater as mudanças climáticas. Ou seja, dinheiro público estava financiando a superexploração de trabalhadores.

Esse caso local insere-se em um contexto mais amplo: em 2024, segundo dados da ONG Repórter Brasil, foram resgatadas 2.004 pessoas em situação análoga à de escravo — uma queda em relação aos anos anteriores, mas ainda alarmante. A construção civil foi o setor com o maior número de resgatados (293), seguido pela agricultura.

Do ponto de vista jurídico e social, o resgate em Mato Grosso reforça a necessidade de políticas públicas atualizadas e fiscalização efetiva, especialmente diante de novos arranjos de exploração que se ocultam sob contratos precários, servidão por dívida e condições laborais degradantes. No âmbito do direito, a tipificação clara do crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal) e a possibilidade de expropriação da propriedade envolvida na exploração (EC 81/2014) são instrumentos legais fundamentais — ainda que enfrentem resistência no Congresso Nacional e no Poder Judiciário.

Para o Brasil, infelizmente, casos como este não são exceção: o trabalho escravo contemporâneo persiste nas cadeias produtivas, no campo e na cidade. É necessária a atuação conjunta entre órgãos fiscalizadores, Ministério Público, Polícia e redes de apoio, fator essencial para que denúncias resultem em resgates e na responsabilização. Todavia, entende-se que o problema requer foco também na prevenção, pois é a vulnerabilidade socioeconômica que leva as pessoas a se tornarem alvos à cooptação para essa prática criminosa. Assim, políticas públicas envolvendo a educação, o fortalecimento institucional, a conscientização pública e os meios para que essas pessoas tenham acesso a emprego e renda devem ser formuladas de maneira articulada e permanente.

No Centro-oeste, sobretudo em Mato Grosso, ações de pesquisa sobre as dimensões históricas e contemporâneas da escravidão, aliadas à análise das condições de trabalho e seus impactos ambientais e sociais, são instrumentos poderosos. Esta coluna fortalece esta conexão não apenas analisando o problema, mas também contribuindo para sua superação, promovendo a justiça e a dignidade laboral que devem permear nosso contexto social.

Lembramos que a escravização de pessoas não é coisa do passado, ao contrário, continua presente na modernidade e no nosso dia a dia, ainda que passe despercebido ao consumidor final quando este vai adquirir um bem e contribui para a perpetuação do trabalho escravo contemporâneo, mesmo que indiretamente. Assim, todos precisamos fazer a nossa parte!
 
Carla Reita Faria Leal e Gabriela Andrade Nogueira Gonçalves são membros do grupo de pesquisa sobre meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.
 
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