Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Walther von der Vogelweide: o grande poeta medieval

Stéfanie Medeiros/ Olhar Conceito

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Walther von der Vogelweide (aproximadamente 1170-1230) é tido como o poeta medieval alemão mais influente no ocidente. Suas líricas amorosa, moral e satírica atravessaram os quase 8 séculos que nos separam do autor, as várias mudanças da língua que hoje é chamada de “língua alemã”, as dificuldade de atribuição de manuscritos e a atribulada conjuntura histórica do continente europeu nesses 800 anos – enfim, atravessaram a história para cair nas nossas mãos hoje, leitores do século XXI.

Pequena pausa: Walther von der Vogelweide foi um ,,Minnesänger” (uma espécie de “trovador”), mas a explicação e aprofundamento deste termo ficará para outra semana, já que é um tópico interessante o suficiente para receber uma coluna inteira.

Voltando: a poesia e a controversa vida de Walther von der Vogelweide são igualmente cheias de áreas nebulosas, cheias de histórias e versões outras de histórias, cheias de mito. Já há alguns séculos é o poeta listado entre os “Doze Grandes Mestres” ou “Doze Velhos Mestres” da arte poética medieval e há indícios de que ainda em vida ele gozava de reconhecimento em diversas regiões do continente europeu (foi sustentado e promovido por imperadores, bispos e condes, passando de corte em corte munido de seus versos e de sua visão perspicaz e ácida dos costumes e das gentes). Apesar disso, seu nome caiu por alguns anos num semiesquecimento que só seria definitivamente revertido pela dedicação do poeta Ludwig Uhland (1787-1862), 6 séculos depois.

A imagem do poeta Walther von der Vogelweide, infelizmente, hoje povoa a cultura alemã muito mais do que os seus versos. Já é tempo (e na verdade sempre foi esse tempo, os homens apenas não o perceberam) de revisitar com afinco a literatura medieval. É preciso revisitar não só a alemã (ou a francesa, ou a italiana etc), mas também a nossa literatura galego-portuguesa (Alfonso X “el Sabio” e D. Dinis I ainda aguardam os olhos atentos do leitor nosso contemporâneo!).

Como eu ia dizendo, Walther von der Vogelweide é hoje mais conhecido do que seus próprios versos (com algumas exceções – vide próximo parágrafo). É personagem na ópera ,,Tannhäuser” de Richard Wagner (1845); o famoso desenho que o representa no Codex Manesse se espalha por boa parte das universidades alemãs (aqui pela Universidade de Heidelberg, por exemplo, onde estão alguns manuscritos do poeta) e também por algumas casas (como pela casa de minha grande amiga e irmã franco-alemã-brasileira Gaby Friess Kirsch, permito-me comentar). Sua figura ainda vibra na história da literatura alemã.

Alguns de seus poemas (em especial os de amor), no entanto, se esgueiram do esquecimento e são ainda lembrados e repetidos. É difícil, por exemplo, falar de Walther von der Vogelweide sem citar o ,,Under der linden” (,,Unter der Linde”, no alemão de hoje) – que me foi (permito-me outro comentário pessoal, já que este texto não é ensaio nem análise formal) lido pela mesma Gaby Friess Kirsch à luz de um abajur na sua sala de estar, alguns anos atrás, e explicado verso por verso com carinho e atenção surpreendentes. Aos que não tiveram essa sorte e ainda não leram o dito poema, reproduzo abaixo o original em “Mittelhochdeutsch”, a tradução para o “Neuhochdeutsch” (por Bruno Obermann) e outra tradução para o português (por Ângelo Ribeiro).

“Under der linden
an der heide,
dâ unser zweier bette was,
dâ muget ir vinden
schône beide
gebrochen bluomen unde gras.
Vor dem walde in einem tal,
tandaradei,
schône sanc diu nahtegal.

Ich kam gegangen
zuo der ouwe,
dô was mîn friedel komen ê.
dâ wart ich enpfangen,
hêre frouwe,
daz ich bin sêlig iemer mê.
Kuster mich? Wol tûsentstunt:
tandaradei,
seht, wie rôt mir ist der munt.

Dô hât er gemachet
alsô rîche
von bluomen eine bettestat.
Des wirt noch gelachet
inneclîche,
kumt iemen an daz selbe pfat.
Bî den rôsen er wol mac,
tandaradei,
merken, wâ mirz houbet lac.

Daz er bî mir lêge,
wessez iemen
nû enwelle got, sô schamt ich mich.
Wes er mit mir pflêge,
niemer niemen
bevinde daz, wan er und ich,
und ein kleinez vogellîn -
tandaradei,
daz mac wol getriuwe sin.”

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“Unter der Linde
Auf der Heide,
Wo ich mit ihm zusammensaß,
Da mögt ihr finden,
Ach, wohl beide
Zerknickt die Blumen und das Gras.
Vor dem Walde in dem Thal
Tandaradei!
Sang gar schön die Nachtigall.

Als ich gegangen
Kam zur Aue,
Da fand ich meinen Liebsten schon.
Da ward ich empfangen,
Heil'ge Fraue!
Daß ich noch selig bin davon.
Küßt' er mich? - ach, tausendfach
Tandaradei!
Seht, wie rot mein Mund danach.

Da hatte mein Lieber
Uns gemachet
Ein Bett von Blumen mancherlei,
Daß mancher drüber
Herzlich lachet,
Zieht etwa er des Wegs vorbei.
An den Rosen er wohl mag
Tandaradei!
Merken, wo das Haupt mir lag.

Daß er mich herzte,
Wüßt' es einer,
Behüte Gott, wie schämt' ich mich!
Wie er da scherzte,
Keiner, keiner
Erfahre das, als er und ich
Und ein kleines Vögelein,
Tandaradei!
Das mag wohl verschwiegen sein.”

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"Sob uma tília, acolá,
Entre verdores,
Tivemos os dois um leito,
E vereis, se fordes lá,
Ervas e flores,
Tudo quebrado, desfeito.
No vale que em frente estava
Tandaradai!
Um rouxinol modulava.

Quando chego, já no prado
O meu amigo
Lá me espera e me bendiz.
Tão cuidoso e enamorado
É p'ra comigo,
Que nunca eu fui tão feliz.
E me beijou? Mas que nada.
Tandaradai! Trago a
Boca inda encarnada!

Fora ali que ele fizera,
Ai, tão formoso!
Um leito todo de flores.
Riria, se bem pudera,
Quem, descuidoso,
Passasse nos arredores:
Minhas tranças, bem cheirosas,
Tandaradai!
Descansavam sobre as rosas.

Mas, ai! se o soubera alguém,
Vai ao depois,
Que fora de mim, coitada!
Que não o saiba ninguém:
Só nós, os dois,
E o rouxinol da levada...
Mas desse não tenho eu medo:
Tandaradai! Saberá
guardar segredo."

Outro poema muito reputado ainda hoje é o ,,Ich saz ûf eime steine” (“Ich saß auf einem Stein” em tradução de Horst Brunner para o alemão de hoje [Neuhochdeutsch]), que pode ser muito facilmente encontrado na internet, assim como traduções para as mais diversas línguas.

Que esta coluna de jornal sirva, então, para aguçar a curiosidade do leitor, e para que ele procure os poemas de Walther von der Vogelweide. Hoje, com a internet, não há mais desculpas para deixar o poeta que for em semiesquecimento. Aqueles que querem se arriscar na leitura do original, que o façam; aqueles que querem ler os versos no alemão de hoje, que o façam; aqueles que os querem ler em inglês, francês, italiano, português – não importa –, que o façam.

Walther von der Vogelweide não ganha nada com isso. Ganhamos nós.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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