Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Heinrich Böll: O trem foi pontual e a narrativa mais

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Heinrich Böll (1917-1985) é o mais importante escritor alemão da época conhecida como pós-guerra (o que aqui significa “período após a Segunda Guerra Mundial”). Recebeu em 1972 o Prêmio Nobel de Literatura, e além deste foi agraciado com vários outros dos mais importantes prêmios possíveis aos escritores alemães: em 1951 o do ,,Gruppe 47”, grupo do qual saíram os outros grandes escritores da língua alemã do pós-guerra, inclusive Paul Celan, Ingeborg Bachmann e o também vencedor do Nobel, Günter Grass; em 1953 o Deutscher Kritikerpreis; em 1967 o Georg-Büchner-Preis.

São inegáveis (ou melhor: creio serem inegáveis) sua importância, seu alto valor artístico e sua influência nas letras germânicas (estes dois últimos atributos infelizmente nem sempre vêm juntos [valor artístico e influência], mas tivemos nós a sorte de Heinrich Böll possuir ambos).

Digo “são inegáveis” ou “creio serem inegáveis”, aqui, literalmente. Em relação ao talento de muitos outros autores consagrados pode haver dúvidas (e há), mas em relação à força, à genialidade e à feliz realização da prosa de Heinrich Böll não há dúvidas. Na época da atribuição do Prêmio Georg-Büchner a Heinrich Böll, escreveu sobre ele o crítico literário Karl Heinz Bohrer no jornal Frankfurter Allgemeine o seguinte: “(...) não Bachmann, não Enzensberger e nem mesmo Grass, mas sim o quase quinquagenário [Heinrich] Böll é o autor mais representativo da literatura do pós-guerra. Ele [Böll] é o seu clássico [da literatura do pós-guerra]”.

Eu pessoalmente acho que Ingeborg Bachmann representa tão bem essa literatura quanto Heinrich Böll, mas o fato mesmo de um crítico literário do porte de um Bohrer ter escrito isso sobre Heinrich Böll já nos chama a atenção.

Já tive a oportunidade de escrever nesta coluna duas vezes sobre Heinrich Böll, mais especificamente sobre seu livro ,,Und sagte kein einziges Wort” (“E não disse uma única palavra”). Na época escrevi que é uma pena o fato de quase não haver traduções de Böll para o português, o que só nos diminui – não por não termos traduzido Böll, mas por milhares de falantes do português simplesmente não terem acesso a um dos realmente grandes escritores dos últimos 100 anos. É uma pena. O que Heinrich Böll esconde e revela em sua prosa transparente e potente é algo de uma fragilidade e de uma força tremendas. O homem comum, o homem que pode ser nosso vizinho, professor, aluno, entregador de leite, lixeiro, presidente, esposa, marido – o ser humano encontra sua representação justa, dolorosa, limpa e (apenas aparentemente) redentora em Heinrich Böll.

Sua prosa não é aquela das grandiloquências, dos monumentos e das marchas. Sua prosa é aquela do homem que trabalha, come, ama, morre (acima de tudo do homem – que morre). É a prosa de consciente amor às miudezas, ao cotidiano, ao sofrimento calado, aos silêncios entre os que se amam e entre os que não se amam, também.

Ao leitor brasileiro é difícil não se lembrar de Carlos Drummond de Andrade quando se está lendo um livro de Heinrich Böll pela primeira vez. A literatura de Böll tem compaixão para com o homem ao mesmo tempo em que o critica; ela dá o tapa e afaga antes de dar outro tapa e outra vez afagar.

O narrador de Böll parece acreditar no homem justamente quando não acredita. É seu crítico mais severo e seu pai mais amoroso.

O livro ,,Der Zug war pünktlich” (1949, “O trem chegou pontualmente” ou “O trem foi pontual”, ou ainda “O comboio estava à hora” para os amigos portugueses) é um livro do pós-guerra por excelência, mas suas pequenas viagens aos meandros da angústia humana nos são tão contemporâneas quanto o eram para os leitores de 1949.

O enredo é simples: um soldado viaja em direção àquilo que ele pensa ser a morte. No trem ele conhece outros soldados, conhece suas misérias (as dele e as dos outros) e por fim conhece uma mulher. Mais eu não digo para não estragar a leitura de quem ainda não teve acesso ao livro.

A técnica da narrativa é, obviamente, genial. Por “técnica da narrativa” digo: o uso de repetições; a alternância entre o narrador onisciente, a narração de Andreas (o soldado) e a de Olina (uma prostituta); o quase imperceptível revezamento entre os devaneios de Andreas e a evolução dos acontecimentos no enredo. Böll escreve seus livros como um costureiro habilidoso que deixa as evidências da costura no lado de dentro da roupa.

Como sempre, este texto de coluna não pode (e nem pretende!) dar conta de todo o livro nem de fazer uma resenha dele. Este texto é só – repito sempre – uma conversa minha com o leitor do jornal. Conversamos sobre estes autores. E eu espero que você, leitor, seja levado a comprar ou pegar emprestado o livro de um ou outro autor sobre o qual conversamos. O “O trem foi pontual” de Heinrich Böll, por exemplo.

Heinrich Böll é desses poucos autores geniais. Ele atinge com sua narrativa níveis que o simples trabalho, dedicação e estudo não permitem alcançar, só o gênio. No caso de Böll há também trabalho, dedicação e estudo, é claro, e só isso já faria dele um grande escritor, muito acima da média. A genialidade, porém, levou Böll ao próximo nível.

Como colunista deste jornal, espero eu que você, leitor, tenha a oportunidade de apertar qualquer livro de Heinrich Böll contra o peito. E que assim seja.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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