Olhar Conceito

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Colunas

Franz Kafka: os muitos artistas da fome

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Franz Kafka (1883-1924) dispensa apresentações. Um dos mais lidos autores da literatura ocidental não precisa que este colunista que vos fala lhe faça apresentações. Portanto, vamos à (curta) conversa sobre o texto de hoje: ,,Ein Hungerkünstler” (“Um Artista da Fome”, 1922).

,,Ein Hungerkünstler” é um dos contos mais cruéis do século XX (lembram-se do outro “artista-cruel”, Elias Canetti? Canetti e Kafka têm muito em comum). A miséria do homem e dos homens que rodeiam o homem – assim mesmo, leitor, com a palavra “homem” repetida para ver se não nos esquecemos – é uma das (muitas) caras possíveis ao conto.

Em linhas gerais, ,,Ein Hungerkünstler” é a história de um artista cuja arte é a de jejuar, a de passar fome. Pode passar fome por dias, semanas: 40 dias. Pode jejuar mais até, se quiser. O Artista da Fome está no ápice de sua carreira e de sua fama: todos vêm de longe e de perto admirar sua arte. Algo, no entanto, acontece (e esse “algo” sempre acontece!) e a carreira do Artista da Fome despenca. E assim a história continua – não quero estragar a leitura dos que se aventurarão pelo texto. É muito fácil encontrar o conto em livrarias por todo o Brasil.

Ler ,,Ein Hungerkünstler” é uma experiência como poucas. Sua leitura vai se expandindo e repetindo depois da própria leitura, como batidas do coração, ou então como a respiração: sem que o leitor esteja a pensar no conto – corta cebolas, varre a casa, pega o ônibus para a faculdade ou trabalho, vai pedir uma bebida numa festa – as cenas vão voltando e os sentidos do texto vão se aprofundando, vão se alargando, escurecendo. Sem que o leitor perceba, o texto vai se enraizando e apertando, ganhando contornos, ganhando o claro-escuro que ganha na memória.

Quanto menos se pensa em ,,Ein Hungerkünstler”, mais o conto se faz presente.

Há ainda lugar para o Artista da Fome que somos todos nós (às vezes ou então constantemente, não importa: não há quem não seja um Artista da Fome)? Há lugar no mundo para o que temos nós para mostrar? O mundo fica para trás ou ficamos nós? Ou ninguém? Há algum mundo que seja a alguém adequado? Ou os dias de glória são sempre só a impressão de um dia absolutamente comum?

A quem interessam a nossa Fome e o nosso Jejum? A alguém? É difícil achar motivos válidos para qualquer coisa. Quem quer admirar nossa fome, que é sempre a maior por ser a nossa?

Todo Artista da Fome é o maior Artista da Fome. Nossa dor e nossa arte nos são sempre maiores do que as alheias.

Resta o consolo de saber que alguns de nós acertaram.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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