Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Rainer Maria Rilke: a pantera e o poeta

 [Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Rainer Maria Rilke (1875-1926) já foi tema desta coluna/conversa algumas vezes. Rilke é acertadamente considerado já há décadas pela crítica um dos maiores poetas da história; no oriente e no ocidente, no continente europeu ou nos outros: Rilke é um dos pontos altos da nossa lírica.

Tudo isso nós já sabemos. Passemos então adiante, pulemos as apresentações. Conversaremos hoje (brevemente) sobre um dos poemas mais significativos da já significativa produção de Rilke: ,,Der Panther” (“A Pantera”). Digo que o poema é “significativo” porque ele exemplifica o ponto alto da produção de Rilke, seu período de maturidade artística cujo início é assinalado pela publicação do livro ,,Neue Gedichte” (“Novos Poemas”), do qual “A Pantera” faz parte.

Até aquele momento, a poesia de Rilke (de modo muito geral, é claro: houve exceções) era uma poesia sem grande ligação com o mundo palpável ao redor do poeta; ou seja, aqueles poemas poderiam ter sido escritos em 1900, 1800 ou 1600: Rilke parecia não precisar do mundo ao seu redor (talvez exatamente por saber o poeta o quão implacável e perdido [no sentido de sem rumo, no sentido dantesco de se perder no meio do caminho] o mundo é). O movimento da poesia de Rilke, portanto, era o de recusa, de reclusão, de autoproteção: o poeta se cercava do mundo que criara e ali vivia em (quase – sempre “quase”) paz. Do ponto de vista técnico, sua obra não apresentava grandes inovações (com exceções como a ,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” (1899) [“Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”]), e exercitava Rilke sua precoce genialidade nesse Éden artificial que era a obra do poeta.

O encontro de Rilke com o escultor Rodin, no entanto, derrubou o jardim que Rike criara e o jogou no centro do furacão, ou seja: na rua, nas casas de homens comuns, na vida-como-ela-é. Rilke perdeu através de Rodin seu mundo artificial, mas ganhou dele as ferramentas para a construção de um novo: real, pulsante, doloroso, irmanado.

No entanto, Rilke – é preciso ponderar – nunca foi um poeta que a crítica poderia chamar de “social”. Não habitam seus poemas as contas de luz para pagar nem as minúcias do cotidiano. O fato é que isso não foi necessário: as folhas que caem no outono, as panteras e os flamingos nos zoológicos, as esculturas quebradas em museus já deram a Rilke uma noção tão profunda, tão abissal, tão assustadoramente complexa do homem e da vida do homem que, de um poema como “A Pantera”, aprendemos nós mais sobre o homem do que de 100 tratados de filosofia, antropologia ou biologia.

E esse conhecimento abissal culminou na criação de duas das maiores obras literárias da história: ,,Sonette an Orpheus" e ,,Duineser Elegien" ["Os sonetos a Orfeu" e “Elegias de Duíno"].

Voltando, então, ao poema “A Pantera”: perto do final do poema já não é mais possível saber se é aquele um poema sobre a pantera ou sobre o homem mesmo (e as coisas e os silêncios que o homem carrega). E aí está a glória de Rilke e a lição de Rodin: daquele animal palpável, visto num zoológico em Paris e que provavelmente bebia sua água e fazia – entediado – círculos atrás das grades, Rilke tirou um dos grandes poemas do século XX, um dos grandes poemas sobre os bichos, sobre o homem, sobre as rochas, sobre os abismos e os silêncios. Tudo encontra ou pode encontrar lugar num poema sobre uma reles pantera. Eis a glória. E amém.

E ao invés de ficar aqui falando e falando sem que vocês tenham contato direto com o texto literário, reproduzo finalmente o poema “A Pantera” (,,Der Panther”) no original e em tradução de José Paulo Paes. Reproduzo também o endereço virtual do projeto “Recit-ação”, para o qual eu li o poema a pedido do poeta Rafael Tahan em outubro de 2014 ( http://recit-acao.blogspot.de/2014/10/rainer-maria-rilke-der-panther.html ). Antes de terminar a coluna, me permito aqui um comentário pessoal, já que este texto é apenas uma conversa: visitei agora em março de 2015 o Jardin des Plantes em Paris. A pantera continua lá. É a mesma de 100 anos, de 200, de 800, de 1000 anos atrás.

A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.

O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.

Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.

DER PANTHER

(Im Jardin des Plantes, Paris)

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden, dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein großer Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille -
und hört im Herzen auf zu sein.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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