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Colunas

A que não sou eu: a mulher reclinada e a vênus peluda de Ticiano

Leíner Hoki

Uma mulher branca, nua, recostada, não há estranhamento nesse tema. Imaginemos essa mulher: uma de suas mãos cobrindo a vulva inocentemente, desfalecida e frágil. O corpo dessa mulher deve ser leitoso, morno, róseo, oferecido somente ao nosso olhar. Sonolentos, os olhos estarão semicerrados e ela aparentará não saber que a observamos. Não há dificuldade em imaginar essa cena. No tocante da tradição da história da arte europeia, essa modalidade de representação erótica do corpo já foi fixada: esse corpo nu de mulher, isolado, quem sabe até inativo, destacado de qualquer contexto narrativo e oferecido a ser contemplado foi particularmente inventado no século XVI, tornando-se um motivo importante até o século XVI.

Eu, como uma jovem mulher não me esforço para constatar essa imposição que carrego comigo: a beleza que, me disseram, há na passividade. Para escrever agora me vejo refletida na Vênus adormecida de Giorgiane, pintada por volta de 1507. E, ao mesmo tempo, sei bem que não sou essa vênus. Eu mesma estou aqui de longe a observá-la desavergonhadamente e ela se torna uma outra coisa: uma mulher, não eu. Pouca coisa nos une em irmandade e eu me sinto livre - ou ao menos me senti até hoje, desligada – da responsabilidade de acordá-la, de avisá-la. O fato de essa outra não me ser tende a me autorizar a encará-la e permitir que assim seja, desprovida de agência, sem sujeito, feminino inanimado.



As imagens eróticas da nudez feminina eram, até a vez dessa pintura de Giorgione, reservadas a locais privados. No entanto, a Vênus adormecida teve legitimada sua nudez em público por ter sido produzida na ocasião de um casamento, por apresentar-se na natureza (o que faz dela algo mitológico, como uma ninfa ou uma deusa) e, enfim, por seu sono e sua inconsciência.

Paro. Cá estou eu novamente diante dela sem acordá-la. (Vamos falar mais baixo que uma mulher dorme e assim deve permanecer).

Essa Vênus adormecida inicia uma numerosa corja de retomadas e variações por parte de outros artistas, mas é apenas em 1538 que Ticiano irá se inspirar nela para sua Vênus de Urbino, aprimorando então uma verdadeira estratégia de erotização da representação visual do corpo feminino.



A mulher pintada por Ticiano só não torna completamente aleatória sua referencia mitológica por vir intitulada como vênus. A figura apresenta-se deitada em um leito, no que parece ser um palácio da época e não na relva, na natureza como uma ninfa. No entanto, é interessante notar que a titulação foi posta posteriormente: na verdade o comanditário, aquele que contratou o artista, pediu apenas uma “mulher nua”. Esse tema, então, torna-se autônomo com relação à justificação mitológica, apesar de ainda evocar o contexto matrimonial tradicional através das duas arcas ao fundo e o vaso de murtas, que remetem a essa ocasião do casamento.

A mulher nua de Ticiano está desperta. Acordada, olha fixa e frontalmente para nós e sabemos, assim, que ela sabe que está sendo oferecida ao olhar. Para a época em que foi pintada, por sua vez, a mão esquerda da figura que em Giorgione estava frouxa, agora adquire inesperadamente um valor preciso: para o contexto médico e religioso contemporâneo a figura preparava-se para o ato sexual, masturbando-se. Essa mulher apresenta alguma agência, enfim. Quase incômoda: ela olha, ela se acaricia.

Mas algo me interessa ainda mais. A vênus de Giorgione está, como podemos observar, com um dos braços erguidos, apresentando uma axila depilada. Em seu texto “A carne, a graça, o sublime”, Daniel Arasse nos convida a reparar que a figura de Ticiano abaixa o braço e a ondulação de seus cabelos (agora loiros), cobre a axila. Adiante, sua mão esquerda recobre um púbis no qual há uma sombra profunda que não se justifica anatomicamente. Retomando a vênus de Giorgione e comparando as duas “os gestos da figura se transformam para entregar-se a uma operação de mostrar-ocultar que coloca em jogo e em cena a pilosidade íntima da figura”. Pelos! Excluídos da representação por Giorgione, “Ticiano erotiza-lhe a sugestão a preço de um “deslocamento” (os cabelos louros no lugar da axila oculta) e de uma “elaboração secundária” (a sombra do púbis)”.

Consciente de sua realização, Ticiano construiu um “arquétipo da imagem erótica europeia”. Ela está nua! Atrás dela, as duas figuras que buscam suas roupas na arca parecem reafirmar o corpo despido, conotando o espetáculo proibido da nudez. Ticiano inaugura uma “encenação retórica do nu”.

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*"Seja Breve" é a coluna semanal sobre arte de Leíner Hoki, 22 anos, cuiabana. Atualmente cursa belas artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.


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