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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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"Ana Cañas, amores urbanos e Todxs", por Marinaldo Custódio

Foto: Ilustração

Leia abaixo o texto de escritor Marinaldo Custódio sobre o mais recente trabalho da cantora Ana Cañas. Universo feminino, "inovações linguísticas" e provocações da artista são analisadas pelo cronista autor dos livros "Viagens Inventadas" e "Vestida de Preto e Outras Crônicas", ambos publicados pela editora Entrelinhas. 

Ana Cañas, amores urbanos e Todxs
 
Marinaldo Custódio
 
Há alguns dias, pensando em algo relacionado ao Dia Internacional da Mulher, me ocorreu a ideia de escrever um texto a partir do álbum “Todxs”, lançado recentemente pela cantora e compositora paulistana Ana Cañas, uma coprodução dela e do também guitarrista de sua banda Tiago Barromeu. Neste seu sexto álbum, algumas novidades: primeira: foi lançado de forma independente pelo seu próprio selo, o Guela Records, e outra: trata-se de um lançamento restrito a serviços de streaming, de modo que os velhos aficionados do objeto disco (LPs, CDs) ficamos impedidos, pelo menos por enquanto, de adquirir a versão física de tão sugestivo e sedutor produto. Por enquanto, reitere-se, porque de repente a artista e seus produtores podem reconsiderar a opção e romper a exclusividade, neste caso, da plataforma digital.

Por outro lado, desde que ouvi, e li, pela primeira vez a palavra ‘todxs’ (usada por quem não quer dizer ‘todos’ nem ‘todas’), interpretei-a mais como uma brincadeira ou uma provocação do que algo para efetivamente ser levado a sério. Afinal, sou um praticante da norma culta da língua e acho que em qualquer situação é bem melhor mesmo escrever do jeito que aprendi na escola.

Assim, o que me chama a atenção, pra valer, no álbum, é o seu caráter provocador. E, pelo visto, tanto para mim quanto para os jornalistas e críticos musicais em geral, pois o que mais eles e elas têm destacado em Ana é justamente a capacidade de ser ao mesmo tempo inovadora e repetitiva em relação a si mesma. Por um lado é inovadora sim, vem para quebrar tudo em termos de posicionamento, de assumir ideias e conceitos, atitudes, enfim, e assim vem sendo saudada: provocante, anárquica, sexual, a que faz a boa afronta, ativista, feminista etc. A capa, cara do disco, já mostra logo a que ela e seu produto vieram: no meio das pernas de uma mulher, seu sexo é uma serpente, boca desafiadoramente aberta, língua afiada pronta para dar o bote. Nesse sentido, a própria artista cutuca, destacando seu propósito, quando utiliza suas páginas sociais para comentar a declarada intenção de refletir sobre um tema que ainda é considerado tabu por muitas pessoas: o prazer sexual feminino. Assim, de modo complementar, em depoimento à imprensa, ela declarou: “É um disco que tem uma sensualidade, claro, e tem mais do que isso. Acho que é uma grande afronta à cultura patriarcal de que mulher não pode falar de sexo, que mulher não goza. É importante quebrar alguns tabus porque eu estou de saco cheio deles e sei que muita gente também está”, diz a cantora.

Em contexto parecido, ela voltou a falar da capa e da imagem que a ilustra: “a capa está relacionada ao conteúdo das letras que defendem o feminismo, LGBTQI+, liberdade de gênero, amor, sexo, legalização da maconha, entre outros”.
Vejamos, então, um trecho de “Lambe-lambe”, uma das faixas de sua autoria (aliás, a maioria absoluta no álbum):
 
“Não se apavore com uma mulher que goza / nós é assim mina maravilhosa”.
 
Por outro lado, como destaquei no início do texto, não há maiores novidades quanto às ‘harmonias’, por assim dizer, de seu novo álbum. Na musicalidade, conforme afirmou um crítico de jornal, ali predominam o blues e o soul marcados pelo beat eletrônico. O que, de fato, já vem desde seu bom disco de estreia, o CD “Amor e Caos” (Sony Music, 2007). E também quanto ao repertório. E assim também na mistura que faz em seu diálogo permanente com artistas relevantes de nosso tempo: em “Amor e Caos” ela revisitou Caetano Veloso (Coração vagabundo) e Bob Dylan (Rainy Day Women #12&35) enquanto em “Todxs” é sua vez de revisitar Itamar Assumpção em “Tua boca” (que conta com participação especial nos vocais de Chico Chico, filho de Cássia Eller), além de Cassiano e Silvio Rochael em “Eu amo você”, hit na voz de Tim Maia da década de 70 (na versão atual de Ana, o clipe da canção mostra a cantora vivendo um romance lésbico com a atriz Nanda Costa).

No mais, além das citadas, “Todxs” brinda seus ouvintes-espectadores com outras canções significativas, a exemplo da faixa de abertura “Declaro my love”, composta em parceria com Arnaldo Antunes, e da faixa-título em que ela faz dueto com o rapper Sombra, com clipe na linha do “toda forma de amor valerá” de Milton e Caetano.   
Em síntese, é isto: posicionamento. Disposição para ir ao ataque, escancarar-se, afrontar, assumir riscos e responsabilidades.

De todo modo, o que não se pode negar é que ela sabe falar, e muito bem, de mulheres. “Já fui mulher, eu sei”, como disse um dia Chico César. Ou como a própria dissera na confessional “A Ana”, também de seu disco de estreia: “A Ana disse ontem / a Ana ficou triste / A Ana também leu / A Ana não existe. / É, a Ana insiste / A Ana não consegue / A Ana inventou / Ela também merece”.

É. De fato, essa Ana (Cañas) não existe. E também merece.
 
MARINALDO CUSTÓDIO, escritor, publicou Viagens inventadas: crônicas e quase contos (2010) e Vestida de preto & outras crônicas (2018), ambos pela editora Entrelinhas.

E-mail: mcmarinaldo@hotmail.com
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