Artista: espontâneo, criativo, desorganizado e, por vezes, solitário. Se levarmos em conta essa definição, então Carlos Gattass Pessoa, ou melhor, “Carlão dos bonecos”, definitivamente é um artista.
Na verdade, Carlão dos bonecos, seu nome artístico registrado na carteira de trabalho, é um bonequeiro. Oficialmente, seria chamado de ator e aderecista, mas o senhor de 54 anos, carismático e receptivo, sente orgulho de ser chamado de bonequeiro.
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"O boneco não é um acessório", disse Carlos sentado em uma cadeira de fio na sua cozinha e escritório. Sim, a cozinha e o escritório eram no mesmo cômodo. Assim é a casa e oficina de Gattass: atípica e peculiar, sem contar muito bagunçada.
Dividida em três cômodos principais, a oficina/casa torna-se quase um corredor por conta das diversas pilhas de bonecos, livros, caixas e sacolas que ocupam a maior parte do espaço. Em meio aos objetos, podemos até ver as partes desmontadas de uma pequena cama elástica e um ventilador que serve para pendurar camisas. Na cozinha, uma mesa de madeira com um notebook, facas, uma estante de livros com roupas por cima. Um verdadeiro labirinto que representa a personalidade complexa e bagunçada, mas extremamente original, de Carlão dos bonecos.
Mas ninguém se perde com Carlão ao lado. Receptivo, dá as boas vindas para quem entra em sua residência interessado em saber mais sobre sua arte. Mostra os bonecos, explica a diferença entre cada um, seus materiais e sutilezas de manipulação e conta sobre sua trajetória de bonequeiro, que começou, aliás, nos anos 80.
Na época, Calos fazia parte de um grupo de teatro com Amaury Tangará. Era ator e ainda não tinha contato com os bonecos. Quando a trupe saiu em viagem no “Circuito Xavante”, no qual apresentavam peças no interior de Mato Grosso, o futuro bonequeiro conheceu Maurício Leite, um mamulengueiro vindo do Rio de Janeiro.
Aos poucos, Carlos e Maurício foram se conhecendo e virando amigos. Maurício ensinou seu aprendiz a fazer os bonecos e a os manipular. Carlos encantou-se. Desde então, os bonecos fazem parte de sua vida, são seu ganha pão e sua fonte de inspiração. Na sua casa, são as companhias constantes. Seus amigos e sua ocupação.
Para aqueles que ainda estão se debatendo com a palavra “mamulengueiro”, Carlos explica: Os mestres mamulengueiros, geralmente vindos do Nordeste, têm um jeito muito próprio de fazer o teatro de bonecos. Constituído de quadros soltos com uma história no final, o teatro de mamulengo é baseado em literatura de cordel e seus bonecos são, na maior parte dos casos, esculpidos da madeira chamada de Mulungu, típica daquela região.
Apesar de Maurício Leite não ter sido um mestre, era um mamulengueiro. E deixou esta tradição como herança que hoje se vê nas performances de Carlos.
"Esta brecha no teatro, o espaço que temos para interagir com o público, é a mais gostosa", disse Carlos, ainda na cadeira de fio, mãos juntas em cima do colo, mexendo a ponta dos pés sem parar. - Por isso nós não trabalhamos as falas e todos os movimentos e atos dos bonecos. Desenvolvemos a história e a deixamos fluir.
Carlão dos bonecos não tem esse nome a toa. Apesar de sua herança mamulenga, Gattass trabalha com todos os tipos de boneco, tanto em sua confecção quanto nas apresentações. Para explicar melhor a diferença de cada um, o bonequeiro levantou-se da cadeira de fio e guiou-nos através de suas sacolas, caixas e pilhas de seus “filhos de ofício”.
Empilhados no primeiro cômodo, estão os bonecos gigantes. Alguns são parecidos com os bonecos de Olínda, com a diferença que os feitos por Carlos têm braços articulados. Outros são como capacetes: o ator pode vesti-los. Em uma caixa, vários fantoches feitos com técnicas diferentes. E por fim, guardados em um baú azul, as famosas marionetes.
A arte de esculpir, pintar e desenvolver os bonecos vai passando de pessoa para pessoa, geração para geração. Carlos aprendeu com Maurício e agora ensina o ofício para suas filhas Yasmin, de 21 anos, e Pétala, de 18. Apesar de as duas terem objetivos diferentes dos do pai, não deixaram de se tornar, como disse Carlos, “excelentes bonequeiras”.
"Mas o sonho de cada uma é diferente. A Yasmin quer ser médica e está dedicando quase todo o tempo dela a isso. Já a mais nova ainda está na escola, eu não gosto de interferir muito nos estudos. Mas as duas sabem fazer bonecos. Não fazem mais com tanta frequencia, mas fazem".
Mas agora faremos uma pausa dos tipos de bonecos, pois Carlos quer suco de limão. Colocando os bonecos em seus lugares, o bonequeiro passou pelas cadeiras de fio da cozinha e escritório e saiu para o quintal apertado, coberto de folhas. Ao lado do muro, um pé de limão. Carlos pegou uma vara com um arame circular na ponta, catou três limões da árvore e os espremeu em uma jarra de plástico azul. Duas colheres de açúcar, mexe, mexe, mexe, entrega um copo para a visita e volta a sentar na cadeira de fio.
Parando para refletir, Carlos não consegue se decidir qual boneco seria, se pudesse virar uma de suas criações. Mas diz sem pestanejar que seus favoritos no teatro são os fantoches. Com as cabeças feitas com materiais diversos e o corpo de tecido, os fantoches são os que dão mais opções e liberdade no teatro.
"Os marionetes, aqueles de fio, encantam as pessoas, mas logo tornam-se cansativos. A manipulação mais complicada e lenta faz com que a interação seja limitada. O fantoche, mesmo sendo mais simples, dá liberdade e uma variedade muito grande de histórias. Não enjoa tão fácil. - explicou entre uma bebericada e outra do seu segundo copo de suco de limão".
Carlão dos bonecos no festival
Do dia 27 de agosto ao dia 01 de setembro, tivemos em Cuiabá o festival “Sesi bonecos do mundo”, com espetáculos nacionais e internacionais. Carlos, com seus 20 marionetes em exposição, apresentou-se e trouxe ao público a experiência da manipulação de títeres (bonecos de teatro).
- As pessoas adoraram mexer com os marionetes, brincar com eles. E não só as crianças, os adultos também. - disse Carlos. Sobre a apresentação, comentou: "Olha, eu vou ser sincero com você. Eu estava nervoso. Os mestres mamulengueiros estavam lá, companhia internacionais... Eu fiquei nervoso sim"
Depois da apresentação, na qual, apesar do nervosismo, houve uma interação concreta e dinâmica com o público, era hora de comer. Em uma mesa, um buffett havia sido montado para os bonequeiros. Momento de comer, mas também de interagir e trocar experiências com outras pessoas da área.
"Sem dúvida, esta foi a parte mais enriquecedora", explicou Carlos, já no terceiro copo de suco. "Quando você faz um trabalho assim, às vezes você fica perdido, sem saber realmente como está sua técnica, se você chegou aonde queria. Mas essa troca de experiências te localiza. Foi neste festival que eu vi que minha arte não está tão defasada assim". Com os olhos brilhando de orgulho contido, Carlos mostrava-se humilde, mesmo que feliz por encontrar-se a altura e, por vezes, além, dos bonequeiros de outras regiões.
E apesar das frustrações e de se sentir perdido às vezes, Carlão dos bonecos continua com sua arte, seja em eventos, aniversários ou desenvolvendo trabalho com as empresas. Esculpindo solitário em sua oficina, jamais está só na companhia de seus bonecos.