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Sábado, 27 de abril de 2024

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Prêmio Jejé de Oyá

Há quase 30 anos, Justino Astrevo dá vida a ‘Lau’, personagem negro e cuiabano que atravessa gerações

Foto: Arquivo pessoal

Justino Astrevo e Lioniê Vitório, que hoje dão vida aos cuiabanos Nico e Lau

Justino Astrevo e Lioniê Vitório, que hoje dão vida aos cuiabanos Nico e Lau

O primeiro contato do ator e secretário de Cultura de Cuiabá, Justino Astrevo, conhecido como “J.”, com o teatro, aconteceu ainda na infância. Quando estava nos palcos, J. deixava a timidez de lado, decorava todas as falas e quase não lembrava de como tinha vergonha até de fazer perguntas para a professora nas aulas. O amor pelo teatro aumentou e Astrevo fez parte da cena teatral cuiabana agitada da década de 80. 

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Justino é um dos homenageados pelo prêmio Jejé de Oyá, que acontece no próximo sábado (29), com objetivo de reconhecer a atuação de personalidades negras de Cuiabá. No ar ao lado da dupla Nico, interpretado pelo ator Lioniê Vitório, nas televisões cuiabanas desde 1995, o personagem Lau já faz parte do imaginário de Cuiabá. Nico e Lau não deixam o linguajar cuiabano, assim como outras manifestações culturais, caírem no esquecimento. 

O ator conta que no palco e nos teatros encontrou uma espécie de abrigo, um lugar em que se sentia protegido das situações racistas. Enquanto gestor municipal de uma Pasta importante como a Cultura, J. ressalta que sempre busca priorizar o espaço da cultura negra na sociedade. 

“No mundo das artes a discriminação é menor naquela bolha, acho que as pessoas tem a cabeça mais arejada e a convivência é mais respeitável. Então, o teatro foi um abrigo para mim. Minha atuação no teatro e como gestor é em defesa dessa causa”.  

Quando ele e Lioniê foram criar os personagens, por exemplo, J. sabia que Lau não poderia ser o personagem Nico, que costuma aparecer sendo “aventureiro” e “menos politicamente responsável”. 

“O Lau é o que tem mais informação, é a voz da consciência na dupla. Assim foi decidido porque sou negro. Se fosse o contrário, estaríamos reproduzindo essa relação de discriminação que a sociedade tem. Se colocarmos o negro como o cara que não sabe de nada, que é um aventureiro, estaríamos reproduzindo isso. Isso é consequência da consciência de atuação, de ser uma pessoa pública dialogando com o grande público”.

Consciente das diferenças raciais no Brasil, J. lamenta que poderia passar um tempo considerável falando sobre as vezes em que já foi vítima de racismo. Certa vez, ele havia acabado de comprar uma camisa em uma loja de departamento no Centro de Cuiabá, mas não pegou a nota fiscal. No ponto de ônibus foi abordado e detido. J. ainda era menor de idade. 

“Outra vez estava assistindo uma peça no teatro do IFMT, acabou tarde, por volta de 22h30, e fui para o centro pegar ônibus. Eu tinha um blackpower e um policial chegou perguntando se eu estava cobrando dinheiro para os motoristas estacionarem. O cara queria me levar preso, só não levou porque o colega falou que não tinha prova. Posso ficar contando várias situações. Como ser humano sofri e ainda sofro preconceito como todos os negros sofrem”. 



Primeiro contato com o teatro

Astrevo nasceu na comunidade rural Rio dos Couros, que fica a 25 km do bairro Pedra 90, na periferia de Cuiabá. Ele conta que o local ficava às margens de um rio, que levava o mesmo nome e que hoje não existe mais. Depois de alguns anos, ele e a família se mudaram para a cidade, na comunidade Campo Velho, onde mora até hoje. 

“Campo Velho fica entre os bairros Grande Terceiro e Dom Aquino. Estudei a vida toda na rede pública de Educação. Estudei nas duas escolas ali no Campo Velho, na Municipal Filogonio Correa e na Estadual Padre Ernesto. Minha iniciação teatral foi nessas escolas”. 

Hoje a trajetória artística de Astrevo serve de inspiração para os familiares. Mas, na época em que era adolescente, lembra que não existiam referências do tipo na família. A vivência teatral foi estimulada por uma professora de Educação Artística, que trabalhava com a turma sobre as linguagens da arte. 

“Eu não me enquadrava em nenhuma delas, por falta de experiência ou vocação mesmo. Um amigo falou: ‘J., vamos fazer teatro’. Foi o primeiro contato que tive, começamos a fazer, apresentamos na escola… Depois montamos um grupo de teatro na escola para apresentar nas datas comemorativas. Eu devia ter uns 17 anos”. 

O grupo começou a se apresentar na escola e na comunidade Campo Velho até se expandir, quando J. começou a participar de mostras e cursos. O ator não se lembra com exatidão qual foi a primeira peça de teatro que apresentou. Com o olhar distante de quem mergulha nas próprias memórias, Astrevo consegue pescar uma lembrança. 


J. afirma que o teatro foi um abrigo contra o racismo. (Foto: Arquivo pessoal)

“Não foi a primeira peça, mas me lembro de ‘Meia-Noite Cinderela’, que era uma sátira. Comecei mais para o lado da comédia, acho que era o instrumento que tinha para me expressar, sempre fui muito tímido. Na sala de aula era um sacrifício danado para fazer uma pergunta para a professora. De repente, no teatro não sentia vergonha, lia o texto, decorava e apresentava”. 

Boa parte do público pode desconhecer a carreira do ator nos palcos de teatros, onde desempenhou experimentações teatrais, fruto de muitas pesquisas, quando fazia parte da extinta Companhia Folhas. Para comemorar os 30 anos de carreira, Astrevo pensa em remontar espetáculos clássicos que fizeram parte de sua trajetória, mas que fogem da comédia. 

“Teve um que fizemos, o ‘Balada para diagnosticar demente’, depois ‘Balada para diagnosticar demente 1 ½’, que era um espetáculo experimental muito bacana. Eram 50 minutos, 25 deles eram sem fala. Temos tudo registrado. Muita gente conhece a gente a partir de Nico e Lau. Seria um impacto para os cuiabanos, porque já não esperam”. 

Companhia Folhas e teatro cuiabano na década de 80 

Enquanto conta a própria história, J. avança alguns anos no futuro. Do adolescente que estava descobrindo o teatro durante a escola, ele pula para o jovem adulto que fazia parte da Companhia Folhas. O grupo começou se chamando “Folhas de Outono”, em referência a uma música de mesmo nome do cantor Roberto Carlos. Era década de 80, e ele começava a descobrir as maravilhas que o teatro poderia lhe proporcionar. 

“Depois fomos evoluindo no trabalho, o Outono caiu e ficou apenas Folhas. Na Companhia Folhas que realmente começamos a fazer nosso trabalho profissional, participamos de todas as mostras de Cuiabá e Mato Grosso, viajamos o Brasil inteiro com espetáculos. Passei a dirigir o grupo e escrever, fiz Letras para aprimorar minha escrita. Foi quando ganhamos alguns prêmios regionais e internacionais”. 

O ator lembra que, nos anos 80, Mato Grosso tinha uma produção teatral extremamente rica, com grupos e companhias formados pelos atores regionais. Com a construção do Teatro da UFMT, Cuiabá foi inserida na rota de passagem de grandes espetáculos e foi palco para atores de peso como Fernanda Montenegro, Paulo Betti e Marília Pêra. 

“Cuiabá sempre foi uma rota de grandes espetáculos, todos passavam por aqui, porque a gente tinha o Teatro da UFMT, que é magnífico. Todo mundo que vinha elogiava a acústica, o pé direito, o palco… Ele foi estudado para ser um bom de teatro. Fernanda Montenegro já veio para Cuiabá várias vezes, ficou aqui 20 dias dando curso para nós. O grupo mais famoso de teatro de rua, que é do Amir Haddad, passou por aqui também. Ele ficou um mês dando oficina”. 
Ao lado de Lioniê, o ator segue lotando palcos de teatros mato-grossenses e atravessando gerações com Nico e Lau. (Foto: Arquivo pessoal)

Como as companhias e grupos de teatro de Mato Grosso formaram uma “rede” na década de 80, havia mostras estaduais, regionais e nacionais. Astrevo tem guardado na memória o momento em que festivais cuiabanos de teatro contaram com mais de 10 grupos com grandes espetáculos. 

“Tinham as mostras estaduais para selecionar as companhias que iam para a etapa regional e depois para as nacionais.  Então, nessa rede aconteciam cursos, oficinas, palestras e workshops. Estávamos em constante circulação com os espetáculos e tínhamos o aparato dessas instituições que colaboraram e apoiaram a atividade, porque não tinham leis de incentivo”. 

Comparando o cenário antigo com o atual, J. chega a conclusão que o teatro brasileiro sofre com o esvaziamento, provocada por questões como a pandemia da covid-19 e o aparecimento do stand up. 

A gente produzia muito. Lembro de festivais aqui em Cuiabá que tinham mais de 10 grupos com grandes e bons espetáculos. Hoje, na verdade, temos uma realidade bem difícil. Faço parte de um grupo de grandes atores que discutem o teatro no Brasil, houve um esvaziamento muito grande da atividade. A pandemia tem muito haver com isso e também a questão do aparecimento dos stand ups.

“Não é uma crítica ao stand up, de modo algum, eu gosto. Só que é mais fácil trazer o Whindersson Nunes para Cuiabá, que é só ele e mais duas pessoas, no máximo, sem cenário, aéreo e hospedagem reduzida. Se não tem produtores locais trabalhando para trazer os espetáculos, eles não tem como viajar. Esse é um lado da questão, o outro lado é que na pandemia as pessoas aprenderam a se divertir de maneira online”. 

Para ele, se o teatro não for subvencionado pelo Poder Público é uma arte que dá pouco retorno financeiro, já que a produção local não tem condições de investir para conseguir colocar Mato Grosso de volta na rota dos grandes espetáculos. 

“Estava falando com o Matheus Nachtergaele, ele falou que antes montavam espetáculos para ficar dois anos em cartaz, com grande estrutura, mas hoje você fica no máximo um ano, às vezes seis meses. Não tem mais temporada de quarta a domingo, só final de semana. Então como investir em produções assim? Não tem como, você não tem mais retorno”. 

Apesar do cenário carente de atenção, J. afirma que Cuiabá ainda possui público para lotar teatros, no entanto, o valor cobrado pelos ingressos ainda é uma questão problemática. 

“Para ele [o público] sair de casa, ele é muito fã da pessoa ou ter um preço muito acessível, porque ele se diverte de graça no celular. O teatro é a linguagem que menos se adequa ao mobile. Quem assiste uma peça de teatro no celular? A gente consegue assistir clipes e shows. Poderia ser algo positivo, no sentido de que já que não tem como ser virtual, vamos ao teatro ver, mas tem a questão dos custos, da produção que não traz mais… É um debate muito sério”. 

Dupla Nico e Lau começou em 1995, quando Astrevo e Lioniê foram convidados para um quadro em homenagem a Cuiabá. (Foto: Arquivo pessoal) 

Nico e Lau continuam lotando teatros 

A dupla Nico e Lau começou em 1995, quando Astrevo e Lioniê foram convidados para um quadro em homenagem a Cuiabá na TV Gazeta. Ainda nem eram a dupla cuiabana de hoje. Descaracterizados, eles aceitaram o convite e fizeram uma contação de causos. O sucesso foi tanto que ganharam oito minutos por semana para fazer humor na televisão. 

“Decidimos pegar a literatura cuiabana que é muito rica em contação de causos. Fizemos isso. O pessoal ligou para a TV, gostou e pediu para repetir. Chamaram para fazer de novo e de novo e de novo… Fizemos quatro semanas consecutivas a convite e a direção da TV pediu um programa semanal. Tínhamos oito minutos ao vivo para fazer humor na televisão, toda quarta-feira de manhã, no programa Revista da Manhã”. 

Foi quando ele e o amigo decidiram criar os personagens. Lioniê já era conhecido como “Nico” e decidiu aproveitar o apelido. Ele sugeriu que o parceiro de palco adotasse o “Lau”. Astrevo brinca que a princípio não achou o nome bonito, mas sequer imaginava que o personagem cuiabano ficaria eternizado na história. 

“Falei para ele que Lau era muito feio e ele disse: não, esse negócio de contar história acaba em dois ou quatro meses. Eu embarquei nessa história”, conta aos risos. 

“Também pensamos em facilitar a leitura: ele é Lioniê Vitório e eu, Justino Astrevo. Não são nomes fáceis. Lembro de uma cena em Mirassol d’Oeste, que tinha os nossos nomes nos cartazes do lado de fora. A peça era uma comédia que chamava ‘Traído’. Chegou uma senhora tentando ler meu nome. Ela disse: queria ver essa peça, mas esses nomes estranhos, não vou entender nada”, lembra. 

Como tinham o canhão de divulgação de uma televisão, quando subiram no palco pela primeira vez, J. e Lioniê ficaram impressionados com a quantidade de público. O ator conta que não estava acostumado a lotar um teatro. Até então, J. e o amigo eram do teatro amador, no sentido de que atuavam por amor.

A demanda de Cuiabá por Nico e Lau fez com que eles enxergassem, pela primeira vez, uma possibilidade de transformar o amor pela atuação em uma fonte de sobrevivência. Para J., a identificação dos cuiabanos com os personagens pode ser explicada pela defesa da identidade. Nico e Lau não fazem chacota do linguajar cuiabano, são usuários dele e das outras tradições da cidade. 

“No primeiro show que fizemos: Nico e Lau: O show. Nós lotamos o teatro, a gente ficou: ‘Caramba, olha só’. Foi aí que a coisa começou, que decidimos fazer também para ganhar dinheiro e sobreviver. Os cuiabanos se sentem defendidos e representados, porque Nico e Lau não fazem chacota com o linguajar, eles falam assim, são cuiabanos. São quase três décadas fazendo os mesmos personagens, atravessando esse período no seu lugar, fazendo e sobrevivendo disso”. 
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