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Sábado, 27 de abril de 2024

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Da periferia de VG a pupilo de Anderson Silva: El Moreno vendeu trufas no sinal por R$ 2 para treinar nos EUA

Foto: Arquivo Pessoal

Da periferia de VG a pupilo de Anderson Silva: El Moreno vendeu trufas no sinal por R$ 2 para treinar nos EUA
Quando tinha 10 anos, o boxeador várzea-grandense  Eliezer Silva, “El Moreno”, ouviu da avó uma espécie de premonição que chegou em forma de conselho, quando disse para o neto não desistir “de ser grande”. Na época ele não entendeu o que a avó quis dizer, mas hoje, depois de enfrentar centenas de desafios para conseguir se estabelecer como profissional boxer em Los Angeles, na Califórnia, Eliezer lembra com carinho das palavras ditas por ela no passado. 

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Eliezer nasceu e cresceu no bairro da Manga, na periferia de Várzea Grande. Quando começou a treinar na primeira academia de luta, do professor Kleber Pires, tinha 17 anos e trabalhava carregando cimento em uma loja de materiais para construção. 

De família pobre, ele ainda se lembra das vezes em que abria a geladeira e via apenas garrafas de água. A realidade financeira fazia com que pensar em treinar boxe parecesse algo muito distante, já que não tinha dinheiro para pagar a mensalidade. 

“Era um trabalho pesado, braçal mesmo. O Kleber Pires disse que achava que eu tinha talento e que poderia fazer outra coisa se entrasse de cabeça. Ele disse para eu ir fazer uma aula, que a gente veria depois. Cheguei e conversei com outro coach da academia, o Índio”. 

Com o apoio de Kleber e Índio, que até então eram desconhecidos na vida de Eliezer, os primeiros treinos de boxe começaram a se tornar realidade. Ele lembra que no segundo dia na academia foi desafiado por um dos atletas. 

“Eu aceitei o desafio e falei: se esse cara me bater, eu paro de lutar. Treinei 30 dias e a luta aconteceu. Terminou empatada e eu disse: cara, agora vou treinar sério. Só que meu defeito, antigamente, era alguém me falar que eu era bom, porque eu achava que não e saía fora”. 

Antes de tentar o boxe, Eliezer jogou futebol, futebol americano e basquete, além de ter passado pelo atletismo. A insegurança fez com que ele deixasse o boxe de lado depois de quatro meses de treino, quando decidiu mudar para o Muay Thai e conheceu o terceiro coach, Alfredo Ortiz. 

“Ele falou para mim: ô, você é um cara que tem talento, mas pode melhorar. Depois disso eu persisti, decidi que queria aprender e melhorar minha técnica. Queria ser o melhor no que eu faço. Muay Thai estava em alta naquela época, todo mundo estava lutando. Mas era a mesma situação: não tinha dinheiro para pagar”. 

Eliezer enfrentou dificuldades para se alimentar nos Estados Unidos para conseguir treinar. (Foto: Arquivo pessoal)

Desconhecidos que acreditaram em El Moreno 

Quando ouviu que Eliezer não teria dinheiro para pagar pelos treinos de Muay Thai na academia, Alfredo Ortiz acreditou na intuição que gritava sobre o potencial que o várzea-grandense tinha para os ringues. Mais uma vez, El Moreno contou com a confiança de alguém que, até então, ainda era um desconhecido em sua vida. 

“Ele falou para eu ir, que conversaria para cortarem um valor dele próprio para eu poder treinar, que eu me tornaria um atleta profissional e não pagaria mais, mas pediu para me dedicar 100%. Só que eu não sabia o que queria, eu me dedicava, mas não o suficiente”. 

Entre os 17 e 18 anos, ele seguiu treinando Muay Thai na academia, mas sem entregar os 100% que havia prometido ao coach. Eliezer lamenta que, por um breve período, andou por caminhos complicados quando se envolveu com drogas e viu a vida mudar completamente. 

“Mesmo assim eu não parei, eu persisti. Por querer oferecer algo de bom [para a família] procurei a coisa mais fácil. Mas muitas coisas aconteceram e me fizeram amadurecer ao decorrer do tempo. Mesmo com essa dificuldade, fazendo coisa errada, eu não parei o treino”. 

Certa vez, ele foi confrontado pelo treinador sobre o desempenho que estava tendo nos treinos. O caminho que estava trilhando no mundo das drogas se afunilou e ele precisou tomar uma decisão. Eliezer conta que tinha duas opções: mudar ou mudar. 

“Já estava com 18 anos, já tinha  meu filho de cinco meses. Me disseram: E aí? O que você realmente quer? Foi quando comecei a treinar kickboxing, porque tinha mais espaço dentro de Mato Grosso e do Brasil. Por ter mais competições mesmo, comecei a lutar pela Confederação Brasileira de Kickboxing”. 

Ele lembra que, finalmente, conseguiu entregar o comprometimento que havia prometido ao treinador. Eliezer se consagrou campeão brasileiro, sul-americano, pan-americano e conseguiu fazer a primeira viagem para fora do Brasil para lutar. Nesse estágio, ele já havia se tornado um lutador profissional e decidido o caminho que pretendia seguir. 

“Fiz parte de um evento chamado WGPK Boxer, que ele passa pelo Canal Combate, acabei também sendo o terceiro do ranking. Chegou um tempo em que tudo que eu podia conquistar dentro do Brasil, eu já tinha conquistado, entende?”. 

Na mesma época, ele se tornou pai pela segunda vez, agora de uma menina. Sem nunca desistir dos treinos, Eliezer lembra que conheceu outros treinadores, que se tornaram como uma família para ele. 

“Hoje temos uma grande amizade de família, de pai para filho. Agradeço a todos eles por fornecer o tempo deles pra mim. Eles dedicavam pra mim oito horas por dia o tempo deles. São pessoas que não desistiram de mim, são pessoas de grande coração. A partir do momento que você demonstra que é isso que quer, eles abrem uma oportunidade. Porque assim é a vida, no momento que tive garra e determinação, as portas se abriram”. 

Atleta com os filhos que moram em Cuiabá. (Foto: Arquivo pessoal)

Sonho de treinar na mesma academia de Anderson Silva 

Conversando com o amigo mato-grossense Zé Esquiva, que é lutador de MMA, Eliezer começou a visualizar a possibilidade de morar nos Estados Unidos para treinar na academia Black House, em Los Angeles, mesma que em que o atleta Anderson Silva frequentava. 

“Ele me ligou, disse que estava há seis meses lá e perguntou se eu queria ir para lá, porque a Black House MMA fazia uma seletiva interna dentro da academia, em que pegariam os melhores atletas para dar um suportes depois. Pensei que seria uma boa oportunidade, porque no Brasil eu lutava mais ou menos duas vezes no ano, porque não podia mais lutar em eventos amadores”. 

Eliezer contou com o apoio da ex-esposa, mãe dos dois filhos dele, para conseguir tirar o sonho do papel. Foi ela quem deu a ideia da venda de trufas em semáforos da cidade para que ele conseguisse custear a viagem para os Estados Unidos. 

“Tinha um patrocínio, mas não era o suficiente e estava começando a pandemia da covid-19. A economia estava sendo afetada e eles disseram que não conseguiram todo o valor que eu precisava. Porque, na verdade, eu precisaria de uns R$ 20 mil”. 

Foram semanas indo em semáforos das avenidas do CPA ou Beira Rio, em Cuiabá, para tentar vender as trufas por R$ 2. De algumas pessoas, Eliezer chegou a ouvir que, mesmo eles comprando o chocolate que ele estava vendendo, ele não conseguiria realizar o sonho de viajar para Los Angeles. 

“Mas muitas pessoas ajudaram, meu coach também foi para o sinal, muitos quiseram me ajudar. Depois de um tempo, as pessoas começaram a me reconhecer, viam que eu realmente estava fazendo algo sério. Fui para São Paulo fazer a entrevista do visto e, graças a Deus, passei, mas não consegui todo o dinheiro”. 

Em uma das andanças para vender as trufas, Eliezer se viu no campo do bairro da Manga, onde cresceu em Várzea Grande. Ele lembra que um jogo de futebol aconteceria no mesmo dia e, por isso, o local estava lotado. No meio da multidão, ele reencontrou o filho de uma vizinha, que tinha 10 anos na época. 

Ele recebeu ajuda do pequeno para vender as trufas e ouviu dele a mesma premonição que tinha ouvido da avó quando era criança: que ele tinha futuro. Foram mais de 500 trufas vendidas no campo de futebol, mas Eliezer conta que ganhou um filho do coração naquele dia. 

“Ele dizia para as pessoas ajudarem o sonho de um atleta. Hoje chamo ele de meu filho. É um menino do bairro da Manga, como eu, que infelizmente está rodeado de oportunidades de ir para o crime ou o mundo das drogas. Infelizmente. E se eu tenho a oportunidade de mudar a vida dele, como as pessoas que mudaram a minha, acho que vai ser ótimo. Ele sonha em ser jogador de futebol”. 

Eliezer coleciona títulos e é uma das promessas do boxe mundial. (Foto: Arquivo pessoal)

A chegada em Los Angeles 

Mesmo com o coração partido por não conseguir levar toda a família para Los Angeles, já que mal tinha o dinheiro necessário para sobreviver sozinho nos Estados Unidos, Eliezer embarcou rumo ao país. Lá, precisou passar por dificuldades para se alimentar, já que chegou com apenas 600 dólares. 

“Tive que pagar 500 dólares em uma cama, para ter um lugar para dormir. Gastei 30 dólares de alimentação em um lugar chamado Dollar Tree, que custa 1 dólar. Eu tinha uma bicicleta e pedalava 14 km para chegar na academia para poder treinar. Treinava de manhã e, quando voltava pedalando, demorava mais porque já estava cansado”. 

A alimentação de Elizer ficou resumida em bisteca, ovos, batata e miojo nos primeiros dias em Los Angeles. Longe do glamour da cidade e da visita por pontos turísticos, que sequer conhece até hoje, o várzea-grandense conta que precisou ser forte para continuar treinando. 

“Sempre tentava falar com a família e só dizia que estava tudo ótimo. A saudade de casa era imensa, chorava muito dentro do quarto. O tempo passou e eu fui trabalhando, crescendo aos poucos”. 

Para conseguir dinheiro para viver nos Estados Unidos, Eliezer trabalhou entregando comida e lavou o banheiro da academia. Com ajuda de um amigo que fez no país, ele conseguiu um carro que estava encostado por conta de um vazamento de óleo. Mas, mesmo com problemas, o veículo pareceu uma grande solução para o atleta. 

“Tinha um amigo meu chamado Michael Mendoza. Falou: ‘Mano, eu tenho um carro no fundo da academia, e se você quiser, te dou ele por 500 dólares. Ele me disse para eu pagar como pudesse. Disse que eu teria que trabalhar para colocar óleo todo dia, porque vazava muito”. 

Atleta se casou nos Estados Unidos e teve Enzo. (Foto: Arquivo pessoal)

O encontro com Anderson Silva 

Em uma das vezes que chegou para treinar na academia, Eliezer ouviu que estava sendo procurado “por um cara”. Ele lembra das pernas e dos braços tremendo quando descobriu que a pessoa, na verdade, era Anderson Silva. O atleta pediu para o várzea-grandense se arrumar para lutar com ele. 
“Fui treinar com ele, tinha receio de tocar e ele falou que era para eu tocar nele, que podia bater. E eu só conseguia pensar que assistia ele na televisão”.

O momento em que treinou com o ídolo foi um alívio da rotina de incertezas que levava em Los Angeles. Mesmo sem compartilhar as dificuldades com ninguém, Eliezer passou semanas precisando escolher entre comer ou abastecer o carro que usava para se locomover. 

“Nesse dia o Anderson me perguntou se estava tudo bem, se eu precisava de algo… Disse que não, mas naquela época eu estava passando dificuldade. Depois do treino com ele, eu estava em casa descansando e meu telefone tocou. Era a empresária do Anderson”. 

Eliezer foi convidado para ser um dos oito atletas que passaram por uma temporada de treinos intensos com Anderson Silva. Os laços entre eles se estreitaram cada vez mais e hoje, o atleta também é parte da família do várzea-grandense. 

“As pessoas veem o Anderson famoso e tal, mas não sabem as dificuldades que ele passou. Não vou falar que a história dele é igual a minha, porque cada um tem uma história a ser contada, mas são dificuldades de fome, dinheiro e humilhações. Lembro que ficava acordado até às 4h para vê-lo lutar”.
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