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Sábado, 27 de abril de 2024

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doces, licores e pratos típicos

Do preparo do quebra-torto na roça ao restaurante: cozinheira mantém viva culinária tradicional

Foto: Olhar Direto

Do preparo do quebra-torto na roça ao restaurante: cozinheira mantém viva culinária tradicional
Desde criança, a cozinheira Iramaia Regina Morais Silva, de 67 anos, já se aventurava no fogão a lenha e na fornalha para fazer as refeições da família ou preparar o tradicional quebra-torto, em Santo Antônio do Leverger (MT), onde ela nasceu. Ela ainda se lembra da paçoca de pilão e da chipa frita que compunha o desjejum pantaneiro. Iramaia ainda carrega o sotaque típico da região em que cresceu, assim como o amor pela culinária tradicional que aprendeu quando morava na zona rural. 

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“A infância da gente antigamente era desde os sete anos já cozinhando feijão, fazendo paçoca de pilão, galinha com arroz, macarrão e pastel em dia de domingo. Antigamente as crianças já trabalhavam. Hoje é diferente, criança tem que brincar até os 16 anos e depois viver a adolescência”. 

Mesmo sem ter tido acesso a um curso superior de Gastronomia por conta da falta de recursos financeiros para Educação, a habilidade de Iramaia para preparar receitas típicas de Mato Grosso, doces no tacho e licores fizeram com que ela realizasse o sonho de trabalhar com carteira assinada na década de 80. 

Orgulhosa, ela conta que foi registrada como chef de cozinha no restaurante Regionalíssimo, quando ele funcionava ao lado da antiga Casa do Artesão, no Porto, em Cuiabá. 

“Eu tinha quatro filhos, 24 anos e iria comandar 49 funcionários, achei que não daria conta. Eram 19 funcionários à noite e 23 de manhã. Assumi a chefia do  Regionalíssimo, era uma concorrência, tinha dia que fazia até fila, eram 200 a 400 pessoas”. 

Há mais de quatro décadas ela mora em uma casa no bairro Tijucal, na periferia de Cuiabá, onde criou os quatro filhos. Há sete anos, Iramaia vive o luto pela morte do filho mais velho, que era sargento do Corpo de Bombeiros. “Foi embora um pedaço meu”, lamenta. 

Antes de mudar para Cuiabá e acompanhar de perto as modernizações que também impactaram sua forma de cozinhar, Iramaia lembra que “vivia na roça”, onde ela e os familiares precisavam plantar para terem o que comer. Iramaia tenta passar parte de suas lembranças e do afeto que nutre pela culinária regional quando cozinha. 

“Pão não tinha, pão era luxo no sítio. Pão era só quando alguém falava ‘vamos na vila’, que era Cuiabá. O ônibus vinha de manhã e só voltava de tarde. A gente se dedicou à agricultura, plantamos mandioca, cana, tinha porco e galinha. Com isso comecei a gostar da culinária que me lembrava da minha infância, fazia parte da tradição, raíz da gente mesmo”. 

Balança de 1975 que era usada por Iramaia e é guardada como relíquia pela cozinheira. (Foto: Olhar Direto)

A mudança para Cuiabá 

Para sustentar a família, a mãe de Iramaia deixava o sítio em Santo Antônio do Leverger para trabalhar com limpeza ou passando roupas nas casas de famílias cuiabanas. Ela lembra que, em 1975, a Casa do Artesão, inaugurada durante o governo Garcia Neto em 1910, começou a receber produtos tradicionais de Mato Grosso. 

“A gente morava no sítio e as coisas já estavam ficando difíceis. Dona Maria Lygia [esposa do ex-governador] perguntou para a minha mãe se a gente fazia doce e rapadura. Ela respondeu que sim, mas as vendas eram poucas, porque nessa época todo mundo plantava e fazia. Na Casa do Artesão poderíamos deixar o produto e eu comecei a trabalhar lá. Foi assim que começou a Casa do Artesão”. 

Iramaia lembra que a Casa do Artesão viveu anos de sucesso. Ela e a família chegaram a vender mais de 400 vidros de doces, licores e redes. Atualmente, o prédio está desativado. A Casa do Artesão chegou a ser inaugurada em um espaço anexo ao Programa Mesa Brasil, na avenida Prainha, em Cuiabá, mas não entrou em funcionamento no local. 

“Hoje em dia fico triste, triste mesmo, passo lá e até choro. Foi com aquela Casa que criei meus filhos, todos os quatro estudaram, têm duas faculdades. Tudo por conta daquela venda dos doces e dos licores. Eu fazia biscoitos e vinham aqueles embaixadores. Naquela época, entre 1997 e 1998 aqui tinha frio, fazia chocolate quente, bolo de queijo, bolo de arroz e broinha para servir para os embaixadores”, lamenta Iramaia. 

Chef Iramaia 

Apesar de já ter vivido e presenciado muitas mudanças, Iramaia conta com detalhes todas as passagens de sua vida, como quando explica que no governo de Frederico Campos disse para a esposa dele, Dona Yone Azevedo Campos, que sonhava em trabalhar de carteira assinada. 

“Foi quando me registraram na Casa do Artesão como funcionária. Foi uma conquista para mim. Fiquei trabalhando do mesmo jeito fazendo chocolate, guaraná ralado, mate gelado com limão quando estava calor e servindo”. 

Em mais uma mudança de governo, dessa vez com a entrada de Júlio Campos na administração estadual, Iramaia recebeu uma nova oportunidade: se tornar chef de cozinha no restaurante Regionalíssimo, que foi originalmente criado ao lado da Casa do Artesão, no Porto. 

Mesmo aposentada, cozinhar continua sendo uma distração para Iramaia, que acorda cedo para preparar biscoitos e outros quitutes. (Foto: Olhar Direto)

“A finada dona Isabel Campos já sabia que eu fazia galinha com arroz, costelinha de porco com arroz, Maria Isabel e paçoca de pilão. Um dia, servindo o chá para eles, ela falou: funcionária, estou sabendo que você cozinha muito bem aqui, vou fazer um restaurante que vai chamar Regionalíssimo, como você é de Santo Antônio, você conhece a raíz”. 

Iramaia viu o restaurante Regionalíssimo se tornar referência na gastronomia regional, mas explica que com a chegada do governo Dante de Oliveira, o espaço foi terceirizado sob justificativa de não estar mais dando lucro. Atualmente, o Regionalíssimo funciona no antigo Museu do Rio, no Porto, onde ela também trabalhou até se aposentar. 

“Depois foi entregue ao Sesc, que construiu o Mangaba. Lá foi um pedaço meu que participou, porque meu filho fez Gastronomia e foi estagiar lá, depois foi convocado para ser chef de cozinha, ficou seis anos lá. Trocou a presidência, veio a pandemia, eles fecharam o restaurante, demitiram todos os funcionários e o Mangaba, que também foi um ponto chave de Cuiabá, está fechado”. 

Mesmo aposentada, Iramaia conta que não consegue passar o dia sem “arrumar ocupações”. Prova disso são os biscoitos de polvilho e francisquitos que enfeitam a mesa da cozinheira em grandes potes de plástico. “Acordei às 4h para fazer esses biscoitos”, diz sorridente. 

Em uma despensa nos fundos da casa, potes grandes e pequenos guardam os doces feitos por Iramaia em sabores variados como caju, figo, mangaba, leite e queijadinha. Ela ainda tem o pilão usado para socar a carne e a farinha, processo tradicional de fazer a paçoca de pilão, apesar de afirmar não ter mais a força necessária nos braços. 

Iramaia aprendeu a preparar doces e pratos típicos de Mato Grosso quando ainda era criança. (Foto: Olhar Direto)

“Meu filho queria fazer agronomia, mas como ele já me ajudava, já socava a carne, cortava caju, ralava mamão, se formou em Gastronomia… Antes era tudo manual, agora já está tudo elétrico. A única coisa que não tem como não ser manual é a paçoca de pilão. Se eu bater no liquidificador, não vai mais ser paçoca de pilão, vai da minha consciência”. 

Iramaia precisou se adaptar ao fogão industrial que modernizou os preparos antes realizados na fornalha ou fogão a lenha. Ela recebe ajuda do filho, que é chef de cozinha, em alguns dos processos. 

“Fiz dois anos de curso de cozinheira no Senac, depois fiz curso de congelamento e armazenagem dos alimentos. Foi difícil para eu me acostumar a usar o fogão industrial, perdi muito doce, chorei muito. Hoje é tudo moderno, tem que ser assim mesmo, mas é que aprendi diferente. Essa transformação, para quem nasceu naquela raiz, é difícil”.
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