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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Aguinaldo Silva lembra em sua saga na imprensa alternativa, incluindo o primeiro jornal gay do país

Aguinaldo Silva lembra em sua saga na imprensa alternativa, incluindo o primeiro jornal gay do país
Aguinaldo Silva já quis ser marginal, ser herói. Aguinaldo Silva, mais precisamente, queria ser um Jean Genet, libertário escritor francês que era filho de uma prostituta com um pai desconhecido. Que levava uma vida boêmia. Que colecionava amantes. Que celebrava o amor homossexual em sua obra — e ostentava destemido a própria homossexualidade na sociedade parisiense. O autor de novelas não chegou a tanto, mas também foi marginal a seu modo. Prova disso é sua atuação, nos anos 1970, na imprensa alternativa. Agora, descansando após o sucesso da saga do Comendador em “Império”, o dramaturgo começa a se debruçar sobre sua própria saga — como repórter — naquele período.

Aguinaldo recebeu a equipe do GLOBO, jornal no qual chegou a ser editor de Polícia, para duas conversas a fim de recordar aqueles anos. Havia, então, duas desculpas. A primeira eram os 30 anos da redemocratização, recém-completados. A segunda, o fato de o Arquivo Geral da Cidade estar digitalizando publicações independentes do acervo do Centro de Cultura Alternativa (CCA) — coleção de cinco mil peças reunida pela hoje editora Maria Amélia Mello com a bênção de Rubem Fonseca (no começo dos anos 1980, o escritor presidiu a RioArte, órgão ao qual pertencia o CCA).

PERFIL POLÊMICO DE IBRAHIM SUED

Entre uma entrevista e outra, Aguinaldo fechou com a Objetiva um livro sobre suas reportagens policiais — publicadas sobretudo em jornais alternativos.

A ideia do livro não é reunir os textos do autor, mas que ele conte como cada reportagem foi produzida. E a história é longa. Aguinaldo colaborou bastante com dois dos jornais alternativos mais famosos, “Opinião” e “Movimento”, e foi editor-chefe do “Lampião da Esquina” — o primeiro jornal gay do país. E o dramaturgo lembra-se bem de sua estreia nessas publicações, porque ela foi tensa. Ele era copidesque do colunista social Ibrahim Sued no GLOBO — e entregou ao “Opinião” um perfil do chefe. Achou que ia apanhar, mas Ibrahim chegou, entregou a coluna; e não disse uma palavra.

— Era um perfil venenoso. E o pior era a caricatura do Cássio Loredano na capa do “Opinião!”. Achei que o Ibrahim ia me dar uma surra. Eu mostrava as manobras dele dentro da alta sociedade, como tirava vantagem disso. Também mostrava como a sociedade era um grupo cheio de tramoias — recorda Aguinaldo.


Nascido em Carpina, Pernambuco, o hoje novelista chegou ao Rio em 1964 para trabalhar na “Última Hora”. Mais tarde, ficou só dois meses no “Jornal do Brasil”, “porque tinha que atravessar dez nuvens de gás lacrimogêneo” para chegar à redação (o jornal ficava na Avenida Rio Branco, na época cenário de seguidas manifestações). E foi aí que parou de trabalhar e decidiu ser marginal.

— Aquele mundo da Lapa me fascinava. Havia um travesti chamado Xana Summer, um negro enorme, de quase dois metros. E Débora, “a bicha que voava”, viciada em remédio para epilepsia. Ela ganhou esse apelido depois de pular do segundo andar de um sobrado, para fugir da polícia, e sair ilesa. Esses travestis eram as Beyoncés da época! — lembra o dramaturgo, entre risos.

O repórter Aguinaldo escreveu sobre assassinatos notórios, como o Crime do Sacopã (assassinato de um bancário, no contexto de um suposto triângulo amoroso) e o Caso Van-Lou, envolvendo o casal de bandidos Vanderley e Maria de Lourdes, que matou dois ex-namorados da moça porque ele tinha ciúmes da vida pregressa dela. Ele também denunciou o esquadrão Scuderie Le Cocq, o que lhe valeu ameaças de morte. Aguinaldo lembra com carinho da passagem pelo “Opinião”, jornal de mais qualidade gráfica que o “Movimento”.


HOMOFOBIA PREJUDICOU DISTRIBUIÇÃO

Mas se nesses dois veículos ele era colaborador, do “Lampião da Esquina” Aguinaldo foi um dos fundadores. Numa época em que “dar pinta” começava a se tornar mais comum, mesmo sob a ameaça da repressão, o jornal teve 37 números — que iam lacrados para os assinantes, caso algum ainda estivesse no armário. Era um jornal “guei” — para usar a grafia adotada por eles —, que trazia reportagens divertidas, mas que também abrigava outras minorias, como os movimentos negro e feminista. Ele cuidava do jornal paralelamente à carreira no GLOBO.

— Lembro que havia um michê, um rapaz de classe média, que atendia também em São Paulo e Brasília. Ele ficou fascinado pelo jornal, visitava a redação, e uma vez o entrevistamos. Ele falava de um ministro, que não citamos na matéria, dizia onde os políticos iam pegar os michês — afirma Aguinaldo, lembrando que o nome do tal ministro também não poderia ser publicado nesta reportagem (melhor assim).

É claro que o “Lampião...” precisou lutar contra a homofobia. E a briga já começou na distribuição. A empresa distribuidora, dominada por italianos machistas, não quis nem saber do primeiro volume do periódico — definido como “jornal de viado”. A equipe precisou ir várias vezes à sede da distribuidora conversar. Só depois de ficarem amigos, conseguiram fazer o “Lampião...” chegar às bancas, lembra Aguinaldo:

— O primeiro número era gratuito. E nem de graça os jornaleiros queriam!

O jornal também sofreu dois processos pela Lei de Imprensa (“O Armando Falcão era um machista”). O segundo deles não foi para a frente porque Aguinaldo e os amigos resolveram conversar com o promotor, levando um exemplar. O sujeito riu tanto ao lê-lo que decidiu não levar o processo adiante.

E humor não faltava mesmo. Uma vez por ano, o “Lampião da Esquina” promovia a Bixórdia — sua festa de aniversário no Teatro Rival. Gente como Elza Soares e Fagner cantava de graça.

— O segurança do Rival ficou tão perturbado de ver tanto viado junto que, no fim de uma das Bixórdias, enquanto eu pagava os fornecedores, deu um tiro para o alto! Todo mundo saiu correndo para fechar negócio no meio da rua! — diz Aguinaldo.

O “Lampião da Esquina” também trazia textos sérios sobre a situação de minorias, a ditadura e outros temas da esquerda — mas isso nem sempre agradava ao editor-chefe, que buscava uma linha menos sisuda. Assim, não era incomum ver textos sérios na mesma edição com ensaios sensuais, de rapazes que a equipe do jornal via na rua e convidava.

— Só uma vez convidei alguém. Era um rapaz que estava no Amarelinho com a amante, mais velha do que ele. Ele ficou horrorizado quando explicamos, mas a amante se animou e o acompanhou nas fotos. Mas eram ensaios muito pudicos, por causa da censura — diz.


Segundo o dramaturgo, o “Lampião...” acabou por falta de editor. Uma hora, ele se cansou dos conflitos com quem queria um jornal “sério”. Resolveu sair, e ninguém quis assumir a empreitada.

Brigas à parte, foram anos de chumbo, mas também de subversão e criatividade. E que marcaram a forma como se pensa hoje o país. Agora é hora de Aguinaldo remexer nos velhos papéis e tirar o pó das antigas histórias.

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