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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Livro-reportagem faz balanço da fase americana de John Lennon

Quando John Lennon foi morar nos Estados Unidos, em agosto de 1971, o republicano Richard Nixon era o presidente, e a sociedade americana parecia viver um certo cansaço da contracultura e do espírito de rebeldia que marcaram a década de 60. Em um cenário de recessão econômica e de incerteza em relação ao futuro, persistiam, porém, as fissuras do corte geracional e comportamental que haviam transformado a América – fissuras ligadas à guerra do Vietnã, aos movimentos pelos direitos civis e defesa das minorias, ao feminismo, à liberação sexual e à difusão da maconha e outras drogas. Por sua vez, Lennon também passava por uma espécie de crise pessoal: queria deixar para trás de vez o período dos Beatles e se engajar em novos projetos, mas isso não era tão fácil em uma terra estranha. “John Lennon em Nova York – Os anos de revolução”, do jornalista James A.Mitchell (Valentina, 248 pgs. R$ 39,90), conta a história dessa fase relativamente pouco explorada da vida de Lennon, quando, em parceria com Yoko Ono, mergulhou no ativismo político, ao mesmo tempo em que consolidava a sua carreira-solo. Sem pretender ser exaustivo, Mitchell constrói uma narrativa saborosa, com base em entrevistas de amigos – como o guitarrista Wayne “Tex” Gabriel, da banda Elephant’s Memory (que aparece na foto com Lennon, em uma sessão de gravação) – e intelectuais e artistas contemporâneos do músico (como a feminista Gloria Steinem), reconstituindo com êxito a conturbada atmosfera cultural, social e política da época.

Associando-se a Jerry Rubin (um dos réus no famoso processo dos “Sete de Chicago”, grupo de ativistas acusados de incitarem protestos violentos durante a convenção democrata de 1968), Abbie Hoffman e outros líderes de um exaurido movimento de resistência ao “sistema”, Lennon logo se engajou em campanhas anti-Nixon, emprestando sua música e sobretudo sua fama a causas variadas. A consequência imediata foi que ele passou a ser vigiado de perto por agentes do FBI e do governo americano, que ameaçava deportá-lo, em uma batalha judicial que durou até 1976, que o autor reconstitui detalhadamente.

Mitchell reconstitui também os processos de criação dos álbuns americanos de Lennon (com exceção do último, “Double Fantasy”), chamando a atenção do leitor para aspectos musicais pouco aparentes de discos que na época receberam uma avaliação modesta ou francamente equivocada da crítica, como “Some time in New York City” e “Mind Games”. Por outro lado, ainda que seja um livro focado em Nova York, seria interessante recapitular o período entre o fim dos Beatles e a mudança para Nova York, o que o autor não faz. Por exemplo, para entender o Lennon “americano”, é importante saber que em 1970, ainda morando em Londres, ele foi à Califórnia para iniciar um tratamento de terapia primal que durou quatro meses – e que ajuda a entender diversas composições suas que lidam com a relação emocional conflituosa que ele tinha com sua mãe. Outro aspecto interessante da psicologia do músico é sua relação ambivalente com os valores burgueses ligados ao sucesso e ao conforto material: “Lennon parecia ter vergonha, dentre outros subprodutos da Beatlemania, de sua riqueza material”, escreve Mitchell. “(Ele) tentava se livrar dos atavios da riqueza e da fama, e ansiava, com igual intensidade, fazer parte de algo mais amplo do que ele mesmo e maior do que os Beatles”. Foi também em 1970 que Lennon conheceu Tariq Ali, que foi entrevistá-lo na Inglaterra e mais tarde seria outra ponte importante com os Estados Unidos.

O autor revela ainda os bastidores de aparições de Lennon em programas de TV americanos – a participação no “Dick Cavett Show” em maio de 1972 despertou considera?vel atenc?a?o por causa da canção “Woman Is the Nigger of the World” – e de sua presença em shows beneficentes, começando com aquele montado para libertar da prisão o ativista anti-Nixon John Sinclair, condenado a dez anos pela posse de dois cigarros de maconha. Dois dias depois de Lennon cantar “Let Him Be, Set Him Free”, um tribunal estadual libertou Sinclair (cenas desse show podem ser vistas no documentário “The US vs John Lennon”, de David Leaf). Esse bem-sucedido engajamento rapidamente transformou Lennon em herói de uma geração em busca de novos ídolos – uma geração de hippies, yippies, radicais e revolucionários que se sentiam órfãos dos anos 60. Ainda que tenha permanecido fiel aos seus ideais até o fim, o próprio Lennon, contudo, acabaria se desiludindo com a real possibilidade de transformar o mundo por meio da participação em protestos e de canções de mensagem pacifista.

TRECHO:

“A presença de Lennon em Nova York era uma oportunidade rara que Rubin agarrara com todas as suas forças. Sem grandes expectativas, ligou para a Apple Records e se surpreendeu tanto quanto todo mundo com o fato de Yoko Ono retornar a chamada. O primeiro encontro de Rubin e Hoffman com John e Yoko Rubin foi direto ao ponto, perguntando várias vezes o que exatamente Lennon queria fazer. Participar, disse-lhe Lennon. Queria montar uma banda e tocar, “devolvendo todo o dinheiro às pessoas”; fazer a sua parte no Movimento com a sua música. Disse que pretendia “compor músicas para a revolução” e que esperava levá-las às ruas para, quem sabe, sacudir um pouco as coisas. “Eu quero fazer alguma coisa política, radicalizar as pessoas, essa coisa toda”, disse Lennon. Sua atenção se voltara para os explosivos conflitos políticos e culturais que fermentavam nos Estados Unidos. No começo de 1971, ele dera longas entrevistas à Rolling Stone e ao Red Mole – um jornal underground britânico editado por Tariq Ali. Lennon achava “vergonhoso” não ter participado mais ativamente dos movimentos contra a Guerra do Vietnã e em defesa dos direitos civis. Sentira-se, muitas vezes, dividido entre o mercantilismo do sucesso dos Beatles – “todo mundo tentando nos usar” – e o desejo de insinuar temas mais maduros em suas canções.

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