A tarde era típica da época de chuva de Mato Grosso: até as 16h, calor. Daí em diante, as nuvens resolvem voltar para Cuiabá e aliviar o calor com uma enxurrada passageira. O quintal era amplo e de tijolinhos. Havia plantas e árvores por todos os lados e o gesso da porta dupla de entrada era trabalhado como se fosse o nascer do sol. Um guarda-chuva vermelho decorado com flores brancas esquecido por uma paciente completava aquele ambiente, dando-lhe o aspecto de descuido, mas um descuido poético. O cenário abandonado já refletia o espírito daquele que estava por chegar: O consultório de Ivens Cuiabano Scaff era antigamente a casa de seus avós, e apesar de seu uso moderno para a prática da medicina, ainda guardava entre suas paredes toda a herança cultural que desabrochava no escritor e novo membro da Academia Mato-Grossense de Letras (AML).
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E então, em um carro Fiat UNO vermelho, combinando com o guarda-chuva esquecido, chegou Ivens, sempre sorrindo, sempre solícito. Desceu do carro e foi abrindo as portas por onde passava, trazendo sua vivacidade de volta ao local antes adormecido. A casa mantinha todos os móveis, incluindo um piano, sofás com design antigo, piso com desenhos, quadros e, em um canto, os livros escritos pelo novo imortal. E ao entrar, percebi que, quando criança, já havia lido “Uma maneira simples de voar”, sem nunca ligar o nome do autor a pessoa. E então se percebe que Ivens, mais que apenas um nome, é um escritor enraizado na cultura cuiabana.
Sentado em seu escritório, Ivens mostra um pouco do médico e do escritor. Entre uma fala e outra, atende o telefone e cita nomes de diversos antibióticos, pergunta a temperatura do paciente e recomenda repouso. E em seguida, volta a falar na sua paixão pela literatura infato-juvenil, especialmente nos contos de Hans Christian Andersen. Tímido, fala com um sorriso no rosto que, se ele ainda tem um sonho nesta vida, além de escrever muito mais livros, é ganhar o prêmio homônimo de seu escritor favorito.
Ainda quando adolescente, Ivens mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez o científico, equivalente ao atual ensino médio, e depois a faculdade de medicina. Nesta época, como muitos jovens que são leitores ávidos, Ivens rabiscava no fundo de seus cadernos alguns versos, muitos deles de saudade de sua terra natal. Lendo o querido Hans e também os irmãos Grimm, os poetas Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Manoel de Barros, Ivens transferia todas estas histórias, situações e belos versos para Cuiabá. Ele criava todo um imaginário com ambientação cuiabana, que mais tarde desabrocharam nos seus próprios livros.
Sua primeira obra, “uma maneira simples de voar”, com personagens típicos da cultura Cuiabana, nasceu de um pedido do SESC Arsenal, que queria apenas três páginas para um projeto cultural. Mas Ivens, viajando por aquela terra que construiu para si mesmo, viu muito mais do que poderia ser dito em apenas três páginas e, sem se regrar, deixou a caneta fluir. E assim nasceu esta obra icônica, parte da infância de muitos cuiabanos, inclusive da que vos fala.
“Mas uma coisa é escrever, outra é publicar”, disse Ivens que, com a obra pronta, precisava de meios para que a história chegasse ao público. Pensando nisto, ele inscreveu-se em um concurso da Secretaria de Estado de Cultura (SEC/MT), no qual o prêmio era a publicação de um livro. Ivens ficou em primeiro lugar no concurso, no entanto, nunca recebeu seu prêmio. A obra foi publicada pela editora Tempo Presente em uma tiragem modesta com diagramação mais artesanal. Mais tarde, a editora Entrelinhas refez a edição, desta vez colorida, com acabamento profissional.
Depois disto, Ivens continuou com sua produção literária, sendo especialmente fértil no campo infanto-juvenil. No entanto, seu livro de poesias, chamado “Kyvaverá”, dedicado “A todas as pessoas a quem a simples menção do nome Cuiabá evoca vibrações felizes em seus corações”, é uma de suas obras mais comentadas e populares. A edição de capa chamativa, acabamento caprichado e poética em todos os aspectos ganhou forma por conta de um trabalho monográfico da UFMT. Na dissertação, a aluna falava de três poetas, sendo um deles Ivens. Um dos professores da banca avaliadora, então, perguntou para a graduanda: “E esse Ivens, é famoso porque é poeta ou porque é médico?”. A editora de Ivens, Maria Teresa, sabendo desta história, tomou o comentário como uma ofensa. Por isto, ela decidiu brindar Cuiabá com o primeiro livro de poesias de Ivens.
Agora, com sua cerimônia de posse na AML se aproximando (será nesta terça-feira, dia 25), Ivens conta um pouco das suas obras que já estão “engatilhadas”. Quatro livros passam pelo processo de edição, sendo três de poesia e um de contos. No documentário dirigido por João Manteufel, Ivens é retratado como “o poeta bem comportado”, título do longa. Mas segundo Ivens, depois da publicação de “O amor são asas...de Ícaro”, livro de poesias de cunho mais pessoal, talvez esta imagem mude.
Imortal da cadeira 7, sucessor de Maria de Arruda Muller
A eleição foi no primeiro dia de fevereiro deste ano. Depois de todos os imortais ainda vivos votarem, Ivens, João Carlos Vincente Ferreira e Agnaldo Martins Silva foram eleitos como novos membros desta instituição tradicional da cultura literária cuiabana.
A cadeira que será ocupada por Ivens nesta terça-feira (25) era antes de Maria de Arruda Muller, que, coincidência ou não, foi uma de suas pacientes. O médico e escritor atendia esta figura icônica em sua residência e lembra com um sorriso no rosto de como aquela senhorazinha de aparência austera tinha uma mente aberta e “pra frente”. Ivens, como todo bom cuiabano, conta diversas histórias sobre Maria, muitas das quais irá relembrar em seu discurso de posse, como dita a tradição.
Animado para a cerimônia, Ivens atende o celular diversas vezes perguntando que horário deve buscar a irmã no aeroporto, pois a família toda está voltando para Cuiabá para participar da festa. A animação de agora, no entanto, era puro nervosismo na quinta-feira (20), quando Ivens estava sentado no escritório rabiscando algumas coisas para seu discurso. Sozinho, pensando na responsabilidade que seria assumir a cadeira de Maria, o nervosismo começou a bater. Ivens pegou o celular e, nas palavras dele, “ligou pra todo mundo”. Mas agora, todo o medo transformou-se em animação e, levantando da cadeira, foi novamente até o UNO vermelho mostrar os convites da festa.
Apesar da cerimônia ser aberta ao público e todos estarem convidados, convites tiveram que ser feitos para marcar o evento. E Ivens, atarefado, sorrindo e muito agitado, esqueceu-se de enviar vários deles. Mas ele todos serão bem-vindos.
Eterno Cuiabano
Uma curiosidade sobre Ivens é saber se o “Cuiabano” de seu nome é realmente um sobrenome ou foi acrescido com fins artístico. Na verdade, este era o apelido de seu bisavó, que ele não se lembra muito bem, mas provavelmente o adquiriu enquanto lutava na Guerra do Paraguai.
Desde então, todos na família carregam no sangue e no nome a sina de serem “Cuiabanos”, conta Ivens enquanto faz um tour pelo seu escritório. Seja no piano ou pela presença do escritor, a antiga residência dos avós de Scaff é cheio de histórias que, a cada dia, ganha novos capítulos.
E antes de se despedir, Ivens vai até seu quintal e conta que as árvores de romã ali plantadas foram o cenário de uma foto das bodas de ouro de seus avós. Tiramos uma foto do escritor no mesmo lugar e Ivens, mantendo a tradição, colhe uma romã e pede que eu a leve pra casa, provando que é Cuiabano não só de nome, mas também de costume e coração.