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Notícias / Política Cultural

Enchente de 74: em nome do "progresso", ditadura afogou bairro cuiabano e dizimou parte da cultura local

Da Redação - Naiara Leonor

“O que mais revolta a gente é que as pessoas que estão ali não conhecem a nossa história, não sabem o que passamos e o que vivemos! Isso revolta muito! Se perdeu tudo!”, diz dona Eliene Araújo, ex-moradora de um dos primeiros bairros da atual capital mato-grossense chamado Terceiro, que guardava na posição geográfica a semelhança com as primeiras civilizações humanas, mas que foi destruído em 1974 por uma ditadura e hoje tem seu principal registro na memória de seus antigos moradores.

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É só andar pelo Centro Histórico de Cuiabá para admirar os belos casarões coloniais, herança de um tempo de ouro. Cultura preservada do século XVII ao XXI, tombada como patrimônio histórico que sobreviveu e sobrevive, talvez a duras penas, ao processo de modernidade. Essa é realmente uma parte da cultura cuiabana. Mas onde estão as casas humildes? Onde estão as construções dos primeiros bairros da capital que cresceu na beira da água que se chama Cuiabá? Onde estão os registros e exaltação dos piqueniques dançantes, dos carnavais de rua da periferia, por exemplo, de um dos primeiros bairros da capital, o Tercerio? Qual é o critério usado para a preservação cultural e social na cidade?



Terceiro foi um bairro centenário que surgiu às margens do Rio Cuiabá, na região atual da Avenida Beira Rio, local em que se encontram nos dias de hoje universidades, casas noturnas, condomínios residenciais e diversos estabelecimentos comercias. Sua desocupação se deu em 1974, época em que a Marinha registrou a maior enchente causada pela cheia do Rio Cuiabá. Sob alegação de insalubridade por conta do alto nível da água, os moradores foram retirados pelo Exército de suas casas e o bairro foi demolido. Dizem que a água foi quem destruiu o bairro, mas quem apagou sua existência mesmo foi o "progresso".

Naquele tempo a orla do rio era vitrine da cidade, quem chegava a Cuiabá vinha das águas e trazia consigo a ditadura travestida de progresso, melhorias para o povo, mas os moradores do Terceiro bem sabiam o valor de sua terra e o peso do preconceito cultural. 

“Quando chegou nos anos 70 que veio o tal do progresso de Santarém, eles passavam ali no porto e diziam que a gente era o patinho feio. Eles precisavam mudar aquilo e esse desejo de elitizar o Terceiro já vinha de muito tempo”, conta dona Liene.
 
Bairro periférico: primeiro no sentido de estar em volta do centro de poder e depois no pejorativo, como se fosse lugar da escória, ou pior: de pobre. Os tempos eram de ditadura. Quem morou no Terceiro diz que seus modos de vida sempre incomodaram a elite e o Governo, que os viam como uma vergonha.

“Eles diziam que éramos o patinho feio porque eles achavam que as pessoas dali não tinham cultura, mas ali tinham professores, bancários. Eles falavam que o povo dali só vivia de trabalhar em charrete, pescar e na olaria, nem todo mundo era isso e mesmo que fossem”.
 
Casas de tijolo, de barro, de taipa, casas grandes ou pequenas, de cuiabano, de paraguaio, de campo-grandense, de corumbaense. Casa do povo cuiabano. Cadê? O bairro centenário da região beira de rio, ou da atual Avenida Beira Rio, sumiu! Os moradores? Expulsos pelo exército em 1974 com o argumento de insalubridade devido às enchentes causadas pelo rio.
 
“Metade dos que moravam lá eram cuiabanos e metade eram pessoas descendentes dos que vieram para Cuiabá com a Guerra do Paraguai, muitos eram de Corumbá, soldados de lá que vieram para cá e ficaram ali naquele pedaço”. 
 
Reacomodar essa gente? Que nada! Quem viveu aquela época diz que a maioria ficou sem ter para onde ir. Casa de parente, alojados em escolas, foram quase dois anos até que as primeiras casas populares foram disponibilizadas pelo poder público. A qualidade? Material compensado, diferente das que demoraram toda uma vida para construir no antigo bairro. “Era pra fazer uma casa boa, mas fizeram uma casa de compensado no Novo Terceiro, a nossa casa antes era de alvenaria. Desviou tudo”.
 
Depois disso vieram as casas de alvenaria, mas não para todos. Dona Liene diz que sem fiscalização, as casas da cohab construídas para os desalojados do antigo Terceiro foram ocupadas por pessoas de outras localidades, que se aproveitaram da situação. Enquanto isso, os que não conseguiram um lar foram ficando no Parque de Exposição de Várzea Grande.













 
“Eles falavam que a gente era insalubre, que terminaram ali porque era insalubre, e tiveram a cara de pau de deixar as pessoas dentro da exposição [parque de exposição de animais] em Várzea Grande, que era baia de cavalo e porco. A revolta de quem foi para lá é muito grande. Lá que era insalubre. Eles colocaram as pessoas em baias que colocavam os cavalos na época da exposição, tinha muito cocô dos bichos. E as casas foram divididas com panos, era barraco. Sem contar que a gente foi muito humilhado”.
 
“Lembro que o senhor Basílio Barbosa de Oliveira trabalhava no Detran na época, no dia que o Exército tirou as pessoas de lá ele foi trabalhar e quando voltou não deixaram mais ele entrar em casa. Mandaram ele pra baia, a revolta dele foi muito grande. Depois, quando ele ia trabalhar, pegava o ônibus ali em Várzea Grande e as pessoas olhavam pra ele como se fosse bandido, ladrão e diziam 'ii chegou o flagelado'. A baia era pior do que favela”, explica ela sobre como era a vida de quem foi morar no parque de exposição.
 
Nas fotos reunidas por dona Liene e seu filho Luiz Paulo da Silva Araújo, historiador autor do livro “Memória Social Ribeirinha” que conta a trajetória do bairro e seus moradores, uma das fotos se destaca de maneira simbólica: um senhor e seus dois filhos, segundo dona Liene, que desmanchavam a casa de uma vida para aproveitar os tijolos.


 
“Depois eles disseram que quem quisesse pegar os tijolos para aproveitar podia. Aí eu fico pensando o que esse senhor estava pensando, lutou a vida toda pra construir essa casa e no final ter que fazer isso. Pensa numa sacanagem”, diz Liene. 
 
No acervo de fotos também é possível ver um grande volume de água durante as enchentes, que segundo moradores aconteciam em períodos de aproximadamente quatro em quatro anos.
 
Em alguns locais eram necessárias canoas para a locomoção, mesmo assim, os moradores dizem que eram felizes e que nunca aconteceu um caso de morte, acidente ou mesmo de doença por conta da água.
 
“Em algumas casas a água entrava, as que ficavam do lado da Prainha. Mas a gente tirava as coisas antes, ou suspendia do chão. Depois de uns dias a água recuava e a gente voltava. Era tranquilo. Não era um incomodo, estávamos acostumados. Era divertido, uma hora você estava na canoa e outra você estava andando. Não me lembro de ninguém ter pegado doença e nunca teve um falecimento por causa da enchente”.
 
“Depois que terminou e tiraram nós de lá do Terceiro, teve gente que morreu contrariada depois porque foram tiradas de lá com metralhadora. Foi uma intimidação mesmo, por exemplo, a família Rodrigues: a água não chegava na casa dela, era no fundo do rio, a água chegava até perto da cozinha, mas não chegava no resto e eles foram tirados, eles pagavam tipo o IPTU da época e foram tirados. A senhora da família Rodrigues morreu de desgosto por ter sido expulsa da própria casa. Eles tinham um quintal grande que em maio era só lírios, era a coisa mais linda, frutas de tudo o que você pensasse tinha lá e eles foram tirados de lá de escopeta. Aquilo ali pra eles que eram certinhos e pagavam certinho, eram muito honestos, foi uma ofensa muito grande. Não demorou e ela foi embora”. 


 
Dona Liene conta que os moradores do bairro eram uma grande irmandade e que naquela época todos se conheciam. As memórias carinhosas que ela compartilha daquela época constroem no imaginário um ambiente feliz e cheio de vida e cumplicidade, um sentimento de amor pela terra e suas raízes.
 
“Como que a gente era feliz lá, fazíamos festa junina, carnaval, piquenique dançante, era a coisa mais gostosa que tinha. Tínhamos time de futebol com uniforme, eu cheguei a ter uniforme de torcida organizada, uma blusa vermelha e uma saia branca muito lindas”.
 
Para tentar resgatar as alegrias desse tempo, dona Liene tentou reunir os ex-moradores em uma associação em 2002 e até contou ter entrado com um pedido para que a Prefeitura doasse um terreno na região do antigo Terceiro para que fosse construída a sede, mas que não conseguiu retorno.
 
“Os moradores espalharam tudo, hoje tem gente no CPA, em Várzea Grande. A gente só se via em velório, então por isso a associação foi feita, mas não deu em nada. Demos entrada na prefeitura para conseguir um terreno para fazer a sede e por incrível que pareça, ali onde tem uma floricultura, quando demos entrada a floricultura apareceu uma semana depois. Nós não tivemos direito de nada. Esses dias num velório eu peguei os telefones e fiz um grupo no zap”. 
 
Agora com o grupo, mesmo distantes eles conseguem manter o contato e relembrar dos tempos felizes que passaram no Terceiro, com suas casas de quintais espaçosos a beira do rio, cheias de pés de fruta e flor, uma lembrança que dizem que não há quantia no mundo em indenização que pague. “A indenização foi irrisória, não deu pra nada, foi um cala-te boca. A prefeitura e o governo não falavam nada com a gente. Eles que queriam tirar a gente de lá”.


 
“Esses dias uma amiga veio e me disse assim ‘eu não sei qual o objetivo que você fez esse grupo, mas parabéns, estou adorando’. Ai eu disse pra ela 'pra enquanto eu viver, nunca esquecerem que teve um bairro Terceiro e que a gente era feliz lá, muito feliz”, declarou Liene emocionada. 

Parte das memórias do Terceiro podem ser encontradas no livro “Memória Social Ribeirinha”  do historiador cuiabano Luiz Paulo da Silva Araújo, graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), filho de dona Liene e herança viva do bairro centenário. A outra parte infelizmente está apenas nas lembranças de quem viveu a história.
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